Era uma vez um
caso. Um desses que pode acontecer com qualquer um. E não é que aconteceu com
um coitado: José Confinado, o plebeu. Como o próprio aposto declara, não tinha
muitas posses. Morava com uma mulher e dois filhos numa casa bem humilde, ganhava
um pouco mais do que o salário mínimo numa repartição pública. Era auxiliar de
serviços gerais. Um cara legal. Não se metia em confusões e nem em trambiques. Ele
“curtia” mesmo todos os dias ir para o trabalho, ganhar o pão de cada dia e
retornar para a sua família. Nos finais de semana, ir a Igreja e tentar se
divertir com as crianças, geralmente na pracinha perto de casa, onde os
brinquedos comunitários e alguns picolés entretinham seus filhos e esposa.
Nessa vida quase trivial, nada de
novo acontecia. O salário não aumentava, no trabalho era sempre a mesma rotina
e não sobrava muito tempo e nem dinheiro para algo inusitado ou diferente. Tudo
igual, igual e igual. Estava tudo tão igual que até mesmo ele, que era
acostumado com a mesmice, começou a dar sinais de tédio.
Motivado pelo seu desejo de mudança, mas sem
saber como alterar nada, José Confinado então decidiu que ia retomar os
estudos. Tinha parado no nono ano de escolaridade, a antiga 8ª série. Em casa,
conversou com a mulher, que prontamente o apoiou. Decidido, e com a força da
esposa, matriculou-se no mesmo Colégio Público em que seus filhos estudavam, só
que no curso noturno; para fazer o Ensino Médio. Grande foi a luta de José.
Porém, como sempre, o humilde trabalhador venceu mais esta. Conseguiu terminar
seu curso em três anos.
No dia da formatura, algo inusitado
aconteceu e não foi o fato de José ser o orador da sua turma na cerimônia tão
aguardada. Naquela manhã, o agora formando do Ensino Médio havia se dirigido ao
seu trabalho como sempre fazia. Pegava às 7 horas. Ao chegar, caminhou para o
banheiro após assinar o ponto e verificar que não tinha quase ninguém em seu
setor de limpeza. E olha que este setor era bastante frequentado por pessoas
que vinham para tirar alguns documentos. Ficava cheio o lugar. Mas naquela hora
não havia muita gente. Entrou no banheiro e fechou a porta. Você deve estar se
perguntando: “e o que isso tem de inusitado? Não está tudo normal?”
Aparentemente, sim. Só que no dia anterior foi posto um aviso na porta do
banheiro masculino, esse mesmo que José usava: “Por favor, ao entrar, não feche
a porta”. José esqueceu que já havia lido o aviso. Entrou e se fechou. É isso aí:
o recado foi colocado porque a porta estava sem a maçaneta que controlava a
lingueta acima da fechadura. Assim, a porta, ao ser fechada, ficava trancada
por faltar o instrumento para abri-la. Como a chave ficava presa e rodava
somente para o trinco da fechadura, José se trancou.
Num primeiro momento, o “Novel
Encarcerado” nem percebeu o fato. Fez o que tinha que fazer: o número 1, e
depois lavou as mãos lentamente após banhá-la com o sabonete líquido.
Enxugou-as e, ao se dirigir à porta, a crise. Tentou abri-la e nada. Percebeu
que se fechou. Lembrou-se do aviso e ficou muito irritado. Disse: “essa não!
Porque que eu fechei a porta? Agora estou preso!” Daí, notou que seu departamento
estava enchendo de pessoas. Na maioria, mulheres por causa de um benefício
específico para elas. Pensou de novo: “que mico que eu vou pagar se começar a
bater na porta ou gritar para alguém me tirar daqui, ainda mais quando souberem
que sou funcionário deste mesmo setor.” E a multidão ia crescendo. Já fazia uma
fila quilométrica. O desespero começou a tomar conta e ele se deu conta de que
não havia levado o celular. Pronto: ligar para quem se não tinha como? Chutou a
parede de raiva, mas sem fazer muito barulho para “não dar na pinta”.
O tempo foi passando e José tentando
sair. Enfiava o dedo no buraco da maçaneta e nada. Olhava pelo buraco produzido
pela ausência dela e via a multidão se avolumando. E na sua maioria, para seu
desespero, mulheres. O plano era o seguinte: ficar quieto e aguardar até que um
homem tentasse ir ao banheiro, pois assim notaria que estava trancado e
obviamente buscaria ajuda para abri-lo, e, com sorte, o Confinado se esconderia
e depois sairia como se nada tivesse acontecido. Entretanto, parecia que os
poucos homens que circulavam ali estavam, como ele, com a próstata em dia, ou
seja, não sentiam aquela necessidade doida de urinar, como acontece com quem
tem o aumento desse órgão. Ninguém do sexo masculino dirigia-se ao banheiro.
Passava um pra cá e outro pra lá e nada de forçarem a porta para entrar.
José olhava pelo buraco e lamentava
ninguém aparecer. Pensou: “até umas 11 horas alguém deve vir aqui, não é
possível!” Deu meio dia e ninguém foi lá urinar. Preferiram o banheiro do
segundo andar, que sempre era mais limpo. Até a pessoa que estaria escalada
para limpar o banheiro de José não foi trabalhar naquele dia. Que dia!
O impaciente “prisioneiro” se
desesperava a cada minuto perdido naquela prisão. Quase decidiu gritar e bater
na porta para alertar as pessoas ali presentes, todavia a vergonha foi maior e
ele resignou-se ao confinamento. A fome e o nervosismo agora competiam em seu
ser. Lembrou-se que a mochila ainda estava com ele, pois entrara no banheiro
com ela. Olhou em volta e a viu no canto, perto da porta do compartimento usado
por ele. Pegou a mochila e confirmou que a esposa, justamente naquele dia, não
arrumara a sua marmita, já que sairia cedo para se aprontar para a formatura.
Lamentou, porém, se a pobre marmikente estivesse ali, já poderia ter estragado
sem refrigeração ou “esquentação”. Achou uns biscoitos que a patroa havia
colocado no lugar da marmita e festejou! Comeu sentado sobre a tampa do vaso
sanitário. Também tomou uma garrafinha de suco de laranja ajeitado na lateral
da mochila pela cuidadosa mulher.
O tempo foi passando e o desespero
voltou. Poderia perder a formatura, que estava marcada para às 18 horas, e ele
era o orador. Já eram 14 horas e nada de usarem o banheiro. Talvez a porta
trancada inibisse o uso por parte dos poucos homens que transitavam por ali.
José tentava o dedo, uma caneta (que trazia no bolso), olhava em volta e não
achava nada que pudesse fazer a vez da maçaneta. Novamente, sentou e disse em
voz alta para si mesmo: “calma, José. Pense em algo com calma. Preciso me
tranquilizar para encontrar um meio de sair daqui sem pagar mico. É só
raciocinar.”
O pensador refletiu, refletiu e
olhou novamente para a mochila. Pressentia que ali estava a saída. Raciocinou e
disse: “o meu chaveiro! Deve ainda estar aqui na mochila!”. E toma revirar a
pobrezinha e tome procurar: abre os compartimentos e fecha, até que numa
bolsinha lateral inferior, achou o chaveiro. Foi como se tivesse descoberto um
diamante. Pulou de alegria! No entanto, a animação foi dando lugar à
constatação de que o problema não era a parte da chave, que possuía uma unidade
fixa; mas sim que a dificuldade era o trinco da maçaneta. Murchou.
Três horas da tarde e decidiu que
iria fazer um escândalo, embora já não se encontrasse no recinto quase ninguém
da multidão da manhã. Não conseguiu de novo. Agora iriam rir dele não somente
por ter se trancado no banheiro, mas porque teve vergonha de pedir ajuda. Olhou
repetidamente para o molho de chaves e raciocinou: “e se eu usar as chaves para
simular uma maçaneta?” Tentou com a mais grossa e nada. “Não tem jeito”. Quando
desistia, decidiu juntar a chave grossa com uma mais fina: pimba! Conseguiu!
Nem acreditou quando a porta se abriu. Melhor, não tinha praticamente ninguém
nesse momento. Pegou a mochila e saiu vitorioso como se nada tivesse
acontecido. Encontrou alguns colegas que perguntaram por que ele estava até
aquela hora no trabalho, tendo em vista que tinha dito no dia anterior que
sairia cedo, para a formatura. José dizia que tinha tido alguns imprevistos no
seu setor, mas que estava tudo resolvido. Rapidamente, fez seu serviço e foi
embora para casa se aprontar, exausto.
Aconteceu a formatura. José Confinado
estava todo bonito: uma camisa social branca, calça azul marinho e sapatos
pretos bem engraxados. A família toda ali. Até os pais. Que orgulho! O único da
família a passar a barreira do Ensino Fundamental. Na verdade, José já fazia
planos para uma possível Faculdade.
No momento exato, o agora “Livre do
Cárcere” pôde fazer, ou melhor, ler o seu discurso, que havia sido
cuidadosamente preparado por ele e revisado pelo seu professor de Português. A
redação não era muito extensa, porém bem elaborada. Devido à experiência
“incrível” vivida naquele dia, o orador alterou a parte final do texto que
ficou mais ou menos assim:
Enfim,
com lutas chegamos até aqui. Mas esse não é o fim. É apenas o princípio de uma
longa caminhada em busca do saber, do conhecimento. Sabemos que muitas pedras
vão estar em nosso caminho; muitos imprevistos. Porém, saibamos de uma coisa.
Quando o inesperado, a crise, o problema, a dificuldade e o desafio chegar, não
devemos nos desesperar. É importante ter calma! Sempre haverá uma saída. É
necessário parar e pensar. Raciocinar para encontrar a melhor estratégia ou
quem sabe a única forma de superar a crise. Não nos esqueçamos de procurar
ajuda. Não tenhamos vergonha de buscarmos a contribuição do próximo, mesmo que
por um momento fiquemos constrangidos. É bem mais proveitoso pedir ajuda e
ganhar tempo do que se estressar tentando resolver sozinho. Pode ser que
solitariamente cada um de nós consiga vencer, todavia demoraremos e nos
desgastaremos mais. Se agirmos assim, raciocinando e sem medo de contar com o
outro, certamente triunfaremos e as portas da vida se abrirão para nós. Que
Deus nos abençoe!
Na segunda-feira, José fez seu primeiro grande ato no trabalho já como
ex-colegial: consertou a maçaneta da porta do banheiro, para não correr o risco
de se trancar de novo, afinal, já havia se aberto para uma nova vida.
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