quinta-feira, 21 de março de 2013

Raciocínio




           Era uma vez um caso. Um desses que pode acontecer com qualquer um. E não é que aconteceu com um coitado: José Confinado, o plebeu. Como o próprio aposto declara, não tinha muitas posses. Morava com uma mulher e dois filhos numa casa bem humilde, ganhava um pouco mais do que o salário mínimo numa repartição pública. Era auxiliar de serviços gerais. Um cara legal. Não se metia em confusões e nem em trambiques. Ele “curtia” mesmo todos os dias ir para o trabalho, ganhar o pão de cada dia e retornar para a sua família. Nos finais de semana, ir a Igreja e tentar se divertir com as crianças, geralmente na pracinha perto de casa, onde os brinquedos comunitários e alguns picolés entretinham seus filhos e esposa.
            Nessa vida quase trivial, nada de novo acontecia. O salário não aumentava, no trabalho era sempre a mesma rotina e não sobrava muito tempo e nem dinheiro para algo inusitado ou diferente. Tudo igual, igual e igual. Estava tudo tão igual que até mesmo ele, que era acostumado com a mesmice, começou a dar sinais de tédio.
       Motivado pelo seu desejo de mudança, mas sem saber como alterar nada, José Confinado então decidiu que ia retomar os estudos. Tinha parado no nono ano de escolaridade, a antiga 8ª série. Em casa, conversou com a mulher, que prontamente o apoiou. Decidido, e com a força da esposa, matriculou-se no mesmo Colégio Público em que seus filhos estudavam, só que no curso noturno; para fazer o Ensino Médio. Grande foi a luta de José. Porém, como sempre, o humilde trabalhador venceu mais esta. Conseguiu terminar seu curso em três anos.
            No dia da formatura, algo inusitado aconteceu e não foi o fato de José ser o orador da sua turma na cerimônia tão aguardada. Naquela manhã, o agora formando do Ensino Médio havia se dirigido ao seu trabalho como sempre fazia. Pegava às 7 horas. Ao chegar, caminhou para o banheiro após assinar o ponto e verificar que não tinha quase ninguém em seu setor de limpeza. E olha que este setor era bastante frequentado por pessoas que vinham para tirar alguns documentos. Ficava cheio o lugar. Mas naquela hora não havia muita gente. Entrou no banheiro e fechou a porta. Você deve estar se perguntando: “e o que isso tem de inusitado? Não está tudo normal?” Aparentemente, sim. Só que no dia anterior foi posto um aviso na porta do banheiro masculino, esse mesmo que José usava: “Por favor, ao entrar, não feche a porta”. José esqueceu que já havia lido o aviso. Entrou e se fechou. É isso aí: o recado foi colocado porque a porta estava sem a maçaneta que controlava a lingueta acima da fechadura. Assim, a porta, ao ser fechada, ficava trancada por faltar o instrumento para abri-la. Como a chave ficava presa e rodava somente para o trinco da fechadura, José se trancou.
            Num primeiro momento, o “Novel Encarcerado” nem percebeu o fato. Fez o que tinha que fazer: o número 1, e depois lavou as mãos lentamente após banhá-la com o sabonete líquido. Enxugou-as e, ao se dirigir à porta, a crise. Tentou abri-la e nada. Percebeu que se fechou. Lembrou-se do aviso e ficou muito irritado. Disse: “essa não! Porque que eu fechei a porta? Agora estou preso!” Daí, notou que seu departamento estava enchendo de pessoas. Na maioria, mulheres por causa de um benefício específico para elas. Pensou de novo: “que mico que eu vou pagar se começar a bater na porta ou gritar para alguém me tirar daqui, ainda mais quando souberem que sou funcionário deste mesmo setor.” E a multidão ia crescendo. Já fazia uma fila quilométrica. O desespero começou a tomar conta e ele se deu conta de que não havia levado o celular. Pronto: ligar para quem se não tinha como? Chutou a parede de raiva, mas sem fazer muito barulho para “não dar na pinta”.
            O tempo foi passando e José tentando sair. Enfiava o dedo no buraco da maçaneta e nada. Olhava pelo buraco produzido pela ausência dela e via a multidão se avolumando. E na sua maioria, para seu desespero, mulheres. O plano era o seguinte: ficar quieto e aguardar até que um homem tentasse ir ao banheiro, pois assim notaria que estava trancado e obviamente buscaria ajuda para abri-lo, e, com sorte, o Confinado se esconderia e depois sairia como se nada tivesse acontecido. Entretanto, parecia que os poucos homens que circulavam ali estavam, como ele, com a próstata em dia, ou seja, não sentiam aquela necessidade doida de urinar, como acontece com quem tem o aumento desse órgão. Ninguém do sexo masculino dirigia-se ao banheiro. Passava um pra cá e outro pra lá e nada de forçarem a porta para entrar.
            José olhava pelo buraco e lamentava ninguém aparecer. Pensou: “até umas 11 horas alguém deve vir aqui, não é possível!” Deu meio dia e ninguém foi lá urinar. Preferiram o banheiro do segundo andar, que sempre era mais limpo. Até a pessoa que estaria escalada para limpar o banheiro de José não foi trabalhar naquele dia. Que dia!
            O impaciente “prisioneiro” se desesperava a cada minuto perdido naquela prisão. Quase decidiu gritar e bater na porta para alertar as pessoas ali presentes, todavia a vergonha foi maior e ele resignou-se ao confinamento. A fome e o nervosismo agora competiam em seu ser. Lembrou-se que a mochila ainda estava com ele, pois entrara no banheiro com ela. Olhou em volta e a viu no canto, perto da porta do compartimento usado por ele. Pegou a mochila e confirmou que a esposa, justamente naquele dia, não arrumara a sua marmita, já que sairia cedo para se aprontar para a formatura. Lamentou, porém, se a pobre marmikente estivesse ali, já poderia ter estragado sem refrigeração ou “esquentação”. Achou uns biscoitos que a patroa havia colocado no lugar da marmita e festejou! Comeu sentado sobre a tampa do vaso sanitário. Também tomou uma garrafinha de suco de laranja ajeitado na lateral da mochila pela cuidadosa mulher.
            O tempo foi passando e o desespero voltou. Poderia perder a formatura, que estava marcada para às 18 horas, e ele era o orador. Já eram 14 horas e nada de usarem o banheiro. Talvez a porta trancada inibisse o uso por parte dos poucos homens que transitavam por ali. José tentava o dedo, uma caneta (que trazia no bolso), olhava em volta e não achava nada que pudesse fazer a vez da maçaneta. Novamente, sentou e disse em voz alta para si mesmo: “calma, José. Pense em algo com calma. Preciso me tranquilizar para encontrar um meio de sair daqui sem pagar mico. É só raciocinar.”
            O pensador refletiu, refletiu e olhou novamente para a mochila. Pressentia que ali estava a saída. Raciocinou e disse: “o meu chaveiro! Deve ainda estar aqui na mochila!”. E toma revirar a pobrezinha e tome procurar: abre os compartimentos e fecha, até que numa bolsinha lateral inferior, achou o chaveiro. Foi como se tivesse descoberto um diamante. Pulou de alegria! No entanto, a animação foi dando lugar à constatação de que o problema não era a parte da chave, que possuía uma unidade fixa; mas sim que a dificuldade era o trinco da maçaneta. Murchou.
            Três horas da tarde e decidiu que iria fazer um escândalo, embora já não se encontrasse no recinto quase ninguém da multidão da manhã. Não conseguiu de novo. Agora iriam rir dele não somente por ter se trancado no banheiro, mas porque teve vergonha de pedir ajuda. Olhou repetidamente para o molho de chaves e raciocinou: “e se eu usar as chaves para simular uma maçaneta?” Tentou com a mais grossa e nada. “Não tem jeito”. Quando desistia, decidiu juntar a chave grossa com uma mais fina: pimba! Conseguiu! Nem acreditou quando a porta se abriu. Melhor, não tinha praticamente ninguém nesse momento. Pegou a mochila e saiu vitorioso como se nada tivesse acontecido. Encontrou alguns colegas que perguntaram por que ele estava até aquela hora no trabalho, tendo em vista que tinha dito no dia anterior que sairia cedo, para a formatura. José dizia que tinha tido alguns imprevistos no seu setor, mas que estava tudo resolvido. Rapidamente, fez seu serviço e foi embora para casa se aprontar, exausto.   
            Aconteceu a formatura. José Confinado estava todo bonito: uma camisa social branca, calça azul marinho e sapatos pretos bem engraxados. A família toda ali. Até os pais. Que orgulho! O único da família a passar a barreira do Ensino Fundamental. Na verdade, José já fazia planos para uma possível Faculdade.
            No momento exato, o agora “Livre do Cárcere” pôde fazer, ou melhor, ler o seu discurso, que havia sido cuidadosamente preparado por ele e revisado pelo seu professor de Português. A redação não era muito extensa, porém bem elaborada. Devido à experiência “incrível” vivida naquele dia, o orador alterou a parte final do texto que ficou mais ou menos assim:

            Enfim, com lutas chegamos até aqui. Mas esse não é o fim. É apenas o princípio de uma longa caminhada em busca do saber, do conhecimento. Sabemos que muitas pedras vão estar em nosso caminho; muitos imprevistos. Porém, saibamos de uma coisa. Quando o inesperado, a crise, o problema, a dificuldade e o desafio chegar, não devemos nos desesperar. É importante ter calma! Sempre haverá uma saída. É necessário parar e pensar. Raciocinar para encontrar a melhor estratégia ou quem sabe a única forma de superar a crise. Não nos esqueçamos de procurar ajuda. Não tenhamos vergonha de buscarmos a contribuição do próximo, mesmo que por um momento fiquemos constrangidos. É bem mais proveitoso pedir ajuda e ganhar tempo do que se estressar tentando resolver sozinho. Pode ser que solitariamente cada um de nós consiga vencer, todavia demoraremos e nos desgastaremos mais. Se agirmos assim, raciocinando e sem medo de contar com o outro, certamente triunfaremos e as portas da vida se abrirão para nós. Que Deus nos abençoe!
           
Na segunda-feira, José fez seu primeiro grande ato no trabalho já como ex-colegial: consertou a maçaneta da porta do banheiro, para não correr o risco de se trancar de novo, afinal, já havia se aberto para uma nova vida.              

(Gilmar Cabral - Livro Histórias Recolhidas)

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