terça-feira, 7 de maio de 2013

O Livreiro













* “Hoje se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver”.

(Tzvetan Todorov)

-- Olha o livro! Olha o livro!

Assim ia de porta em porta; de casa em casa, seu Antunes de Assis, ou popularmente conhecido como seu Tunico. Desta forma começou sua aventura como livreiro. Fazia isto desde a sua juventude. Gostou tanto do ramo que, com muito esforço e dedicação, conseguiu abrir uma pequena livraria no bairro de Sãens Pena, no Rio de Janeiro, perto de uma Universidade. Seu negócio, que espalhava saber e instrução, ficou muito conhecido pelos alunos e professores universitários que circulavam pelas redondezas. Porém, seu público não era formado apenas por “intelectuais”. Ali também frequentavam pessoas comuns que somente gostavam e gostam de literatura ou mesmo de uma boa leitura.

Seu Tunico já beirava a casa dos sessenta e cinco anos, era baixinho, moreno, cabelos grisalhos, que impunham respeito além de sua conduta exemplar. Casado com dona Diná e pai de dois filhos que, admirando o gosto do pai pelo conhecimento, enveredaram pelos caminhos das letras: Paulo se tornou advogado e Helena professora de História. Situações estas bem contrastantes com as de seu Antunes, que assim como a esposa, só tinha o ensino fundamental incompleto; parou por volta do sétimo ano, antiga 6ª série, isto para trabalhar e ajudar a família de origem humilde. Dava-se muito bem com a esposa, mulher madura de cinquenta e cinco anos e bastante companheira nas horas difíceis e alegres, era seu grande amor. 
Também mantinha bom relacionamento com os filhos, estes já casados e bem arrumados na vida. De cada um dos dois recebeu uma netinha: Ellen (8 anos) de Paulo e Joana (5 anos)  de Helena. Umas gracinhas de crianças e que eram, junto com os pais, outro grande amor de sua vida. Morava numa casa simples, mas com dignidade, no bairro da Penha perto do Hospital Getúlio Vargas. Todavia, suas mais marcantes características eram: a humildade, a paciência e a paixão pelos livros, era um leitor voraz. Só deixava um pouco a humildade de lado quando se gabava do seu sobrenome “de Assis”. Pois fazia menção ao seu autor predileto: Machado de Assis.    

No trabalho, sabia tudo. Tanto de vender como de conhecer as obras e os clientes. Já havia lido quase todo o seu estoque de livros e fazia questão de ler os lançamentos novos para poder indicá-los com mais segurança aos fregueses. Aliás, em se tratando de conhecer o gosto e a vida dos clientes, não havia ninguém igual ao seu Tunico. Recebia todos com muita atenção e entusiasmo. Indicava livros, dando sugestões de leitura e, quando percebia que algo não estava bem com a pessoa, se oferecia para uma conversa; é lógico que não tão demorada para não atrapalhar o serviço e não deixar tudo nas costas dos dois funcionários, que procuravam manter seus empregos e aos quais ele remunerava com muito esforço. O certo é que essas conversas, que mais pareciam atendimento psicológico, sempre acabavam em uma ou mais sugestão de livros. Não é que o paciente e “psicólogo” livreiro estivesse se aproveitando dos problemas alheios, não. Seu Tunico acreditava que para cada situação da vida, seja ela boa ou ruim, há sempre uma literatura esperando para ser lida e assim agir de maneira positiva para, quem sabe, ajudar na solução do problema.

O fato é que além de “consultório” (para os que andam com pressa e querem soluções rápidas), a livraria passou a ser também vista como uma espécie de “Farmácia”; sim igualzinha àquela que os antigos (embora isto ainda exista) frequentavam e, por conhecerem bem o farmacêutico e este os seus familiares, lhe pediam diagnósticos, sugestão de medicamentos; até por confiarem mais nele do que nos médicos, não é mesmo?! Bem, nessa visão alegórica que une costumes antigos, usos atuais e farmacológicos, seu Antunes funcionava como um desses “farmacêuticos de plantão”. Ora fornecia pílulas de microcontos, provérbios e pensamentos como calmantes. Ora indicava analgésicos de poesias drummonianas, bandeirianas, murilianas, gullarianas, e assim foi.... Para alguns, “Medicava” cápsulas de antidepressivos em forma de livros de piadas e histórias engraçadas e, aos mais debilitados pelas “infecções” do intelecto e que estavam acostumados com “medicamentos pesados” e “tratamentos demorados”, vendia os romances históricos; desse jeito, alguns iam sendo “curados” e outros acabavam por parar no “CTI das letras”, exaustos de leituras, mas cheios de conhecimento.      

Noutro dia, chegou um tal de Daniel, rapaz esguio, beirando seus 16 anos e com o rosto cheio de espinhas. Estava com um problema “sério”: um relacionamento mal resolvido com uma moça. Ao ouvir suas lamúrias, seu Tunico consolou o jovem e indicou um desses romances para adolescentes e até que a história da narrativa era parecida com a aventura amorosa do novel casal; e o melhor, com final feliz. E a coisa foi seguindo assim. A cada dia uma novidade.

O senhor Hermes apareceu lá na livraria se queixando de problemas com os seus filhos. Recebeu a indicação de um desses manuais para entender e educar bem a prole. Voltou para agradecer o resultado.

-- Valeu seu Antunes! Foi batata! Agora já sei como lidar com os moleques! Por favor, me indique um romance, pois tomei gosto por essa coisa de ler.

Saiu com um exemplar de Esaú e Jacó, do mestre Machado de Assis. Será que seu Tunico exagerou na dose? Provavelmente não.

Ainda sobre problemas familiares, uma jovem chamada Sophia pediu conselhos ao livreiro para saber como resolver a dificuldade de se relacionar com o pai. Como era muito geniosa e farrista, o sábio comerciante colocou nas mãos dela alguns romances bem românticos do tipo A moreninha para ver se ela ficava meigamente amorosa e parava um pouco mais em casa e aí, quem sabe, a conversa ficaria mais fácil com seu progenitor.

Estácio estava na pior por causa do desemprego. Entrou num sábado na livraria, olhou os livros nas estantes e perguntou se não havia vaga na loja. Seu Tunico, com uma prosa e meia de conversa, percebeu que o camarada tinha “tino pro comércio”. Perspicaz como um descobridor de talentos, olhou para as estantes, divisou um título, retirou-o de lá e o entregou ao futuro comerciante, na realidade deu o livro para ele (já que o pobre não tinha no bolso um tostão). O manual oferecia ao seu leitor a seguinte proposta: “Como abrir seu primeiro negócio”. O cara saiu feliz da vida e nunca mais voltou.

Dona Aurora de 80 anos chegou numa segunda-feira, logo de manhã, após acordar bem cedo e ir à padaria, como é costume dos anciãos. Com uma bolsa que mais parecia para ir à feira do que a uma livraria, pediu alguma coisa que melhorasse a sua saúde, pois não aguentava mais conviver com as suas companheiras: a artrite, a artrose e as dores reumáticas. A princípio o dono do estabelecimento pensou em indicar o Pronto Socorro mais próximo, porém depois seu Tunico pensou: “os idosos também têm o direito a uma boa leitura”. Entretanto, naquele caso específico, a indicação foi precisa: Um manual de boa saúde. A senhora de cabelos branquíssimos agradeceu, comprou e, de vez em quando, passava folheando o livro, dando aquele sorriso vazio, mas sempre simpático.

Ulisses apareceu com muitas dúvidas sobre como redigir tecnicamente a sua Monografia de Final de Curso. Ele aparentava ter 20 anos. Negro, alto, usando um par de óculos com lentes de “fundo de garrafa”, grossas, uma imagem bem intelectual. Cursava Letras e portava alguns livros na mão direita e uma enorme mochila nas costas. Perguntou ao seu Antunes sobre vários compêndios. Ao ouvir tantas negativas do vendedor, começou a bater um desespero.

-- Senhor! Eu tenho que entregar a monografia semana que vem e hoje já é sexta-feira. Por favor! Ajude-me a encontrar um manual que explique os detalhes técnicos da redação acadêmica!

Seu Tunico primeiramente questionou:

-- Por que os professores não o orientaram quanto ao trabalho científico?

-- Eu...eu.. “matei” quase todas as aulas de “metodologia da pesquisa” e agora tenho vergonha de recorrer aos professores.

Ouvindo a resposta, o ancião amante das letras desistiu de continuar o interrogatório. Mesmo com “ar” crítico, Seu Tunico sugeriu uma obra propícia: Como redigir trabalhos acadêmicos. O jovem comprou e agradeceu a sugestão. Outro dia passou por lá, com esse livro na mão esquerda e a mochila murcha nas costas. Deu um “oi” pro dono da livraria, entrou, comprou Grande sertão: veredas e seguiu sem graça o seu caminho.

Mas não pense que somente de dificuldades amorosas, familiares, físicas, e acadêmicas vivia a livraria. Não. Teodora surgiu de mansinho e trouxe consigo uma experiência nova para o “consultório da alma” tão bem administrado por seu Antunes, a saber, pediu sugestões de livros espirituais. Segundo essa gentil senhora de olhar apreensivo, seu espírito precisava ser “tocado” por algo transcendental. O calejado conversador, porém aprendiz de teologia, apresentou-lhe livros devocionais, de meditações e de doutrinas. É claro que não podia faltar a Bíblia já que seu Tunico observou o cordão com uma cruz adornando o tenso pescoço daquela dona. Aproveitou a oportunidade e vendeu, além dos livros religiosos, uma coletânea de poemas de Adélia Prado, grande poeta que aborda as questões da alma com beleza e riqueza de profundidade. Teodora retornou algumas vezes. Parecia mais aliviada, entretanto, não largou mais a Adélia, Cecília, Cora Coralina, Clarice Lispector...

 Depois de lidar com os “embrulhos espirituais”, o incansável livreiro testou seus conhecimentos de psicologia infantil e de pedagogia, quando começou a conversar mais vezes com Rosa, uma menina de 8 anos e que ia à tardezinha à livraria com a mãe para ver alguns livros de literatura infanto-juvenil. Aos poucos ele foi percebendo que a garota, por trás daquele sorriso gostoso e cativante, possuía um olhar triste e distante.

Puxando conversa com a mãe da menina para ver se descobria algo que explicasse aquele semblante paradoxalmente risonho e triste, seu Antunes encontrou nela uma mulher fria e indiferente com relação à filha. O experiente livreiro foi logo “matando” a charada. Parecia que o relacionamento entre as duas não era “lá essas coisas”. Pelo jeito, a mãe dava tudo que a menina pedia, mas não dava o mais importante: atenção, a conversa, a presença.

Pensando em melhorar a situação, seu Tunico mostrou alguns exemplares de literatura infantil para a mãe e pediu que ela os lê-se, pois seria importante que a menina visse o exemplo de leitura em sua própria casa. Além do mais, aquela jovem senhora teria condições de conversar sobre as histórias com a filha. Dito e feito. Não demorou muito para a garota voltar mais vezes à livraria com um rosto iluminado e sem aquele olhar triste. Ao conversarem, ficou nítido que a estratégia deu certo. Não apenas sua mamãe, mas também seu papai se interessou pelos livros infantis. Agora liam juntos e conversavam sobre histórias incríveis tais como: O fantástico mistério de feiurinha, O menino do dedo verde, A bolsa amarela, O reizinho mandão, os contos de Perrault, dos irmãos Grimm e as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo... A autoestima da menina subiu, e o mais interessante, a dos adultos também. Detalhe: sem precisarem de livros de autoajuda. Isso foi muito legal.

Bem, não pode ficar de fora desse breve registro das “aventuras terapêuticas” de seu Tunico, aquele que, sem dúvida, foi o caso mais marcante dentre essas histórias de aconselhamento. O fato envolveu uma senhora de quarenta anos chamada Adelaide. Ela frequentava toda semana a livraria. Olhava um livro e outro, porém quase sempre não levava nenhum. Seu Antunes percebeu isso e logo se aproximou para entender se era a falta de opções de sua loja ou se havia alguma outra situação que ele desconhecia. Isto é, aquelas de fórum íntimo que ele tão bem aprendia a cada dia escutar.

No início, Dona Adelaide recusou a aproximação. Deu mostras que apenas queria comprar um determinado livro que, semana após semana, procurava, mas não encontrava. Esta atitude não convenceu o determinado conselheiro, mesmo porque a dona já apresentava sinais de aflição. Assim, ele insistiu buscando sempre um argumento para esticar a conversa, tornando-a mais agradável e próxima.

Até que um dia Dona Adelaide chamou o dono da livraria, revelou-lhe seu nome e pediu uma conversa em particular. Ela estava aflita. Seu semblante descaído. Suas mãos trêmulas e a boca seca. De morena ficou branca. Seu Tunico rapidamente puxou-a para uma cadeira no seu cubículo que ele chamava de escritório. Deu um copo de água para a senhora e notou que as lágrimas já começavam a escorrer pelo seu rosto relativamente bonito, mas marcado pelo sofrimento angustiante como o de quem guarda um segredo e o sufoca até não poder aguentar mais.

Aquela ansiosa senhora começou o diálogo falando que tinha uma família linda. Dois filhos já rapazes formados tanto na estatura quanto na maturidade. Elogiou muito seu esposo dizendo o quanto ele era bom para ela e para os filhos. Trabalhador, honesto e que nunca deixava faltar nada em casa. Inclusive, reformava-a sempre almejando a melhor estética aliada a um bom conforto. Quis dizer que possuía motivos de sobra para ser feliz. Isso deixou seu Antunes preocupado. Ele pensou: “será que esta mulher traiu o marido?!”. Mesmo apreensivo com esta possibilidade, tomou coragem e perguntou:

-- Então, por que a senhora está desse jeito, tão aflita se tem tanta coisa boa em sua vida?

Adelaide respirou fundo e disse:

-- Há três meses eu fui ao médico para saber o resultado de um exame, mamografia. E recebi a notícia que toda mulher nunca deseja ouvir. Estou com um nódulo em uma das mamas. Ao escutar isso, as forças me faltaram e parecia que o chão havia sumido debaixo dos meus pés. A doutora me tentou tranquilizar e falou que podia ser benigno e que eu deveria esperar a biópsia. Na semana seguinte, fiz o exame e somente hoje tive coragem para pegar o resultado. Deu positivo. Estou com câncer. Tenho poucas amigas por aqui, porém não consegui falar sobre isso nem com a minha família. No auge do desespero, pensei no senhor e na sua fama de ajudar os outros. Por favor, o que eu faço? Como contar isso para meu marido e meus filhos?

O inseparável amigo dos livros pensou, pensou e pensou. E falou:

-- Dona Adelaide, por mais difícil que seja, precisa contar a eles. A sua família tem o direito de saber. E, além disso, eles poderão ajudá-la muito mais do que eu nesse processo doloroso e desgastante. Hoje, mais do que nunca a senhora precisa da força e do amor deles para superar esse período. Vá para casa, reúna forças e, quando achar o momento apropriado, conte a seu marido e seus filhos. Isso vai fazer bem para a senhora também.

Dona Adelaide atendeu o conselho do livreiro e foi para casa.

Três semanas depois ela voltou mais confiante. Havia contado aos seus o fato da doença e tinha realizado a primeira consulta com uma mastologista, especializada em oncologia. Ia realizar uma cirurgia para remover o tumor e iniciar sessões de quimioterapia. Estava esperançosa porque o nódulo era pequeno e se encontrava na fase inicial, portanto as chances de cura eram altas. Sua família havia reagido bem na medida do possível. O esposo foi firme, embora tenha ficado chocado. Os filhos ameaçaram desespero e choradeira, mas Dona Adelaide foi muito forte e disse que necessitava do apoio deles e que para isso eles deveriam estar bem. Contou com detalhes a conversa e a reação de sua família para seu Antunes.

Depois de ouvir tudo, seu Tunico quis trazer a conversa para o mundo da literatura a fim de amenizar o papo e de dar um incentivo literário à vida de Dona Adelaide. Assim, combinou com ela que o “tratamento” seria o seguinte: a cada semana lhe indicaria um livro de acordo com o seu “estado de espírito”. E foi isso o que aconteceu.

Numa semana ela estava mais alegre e seu Antunes lhe indicava textos de Stanislau Ponte Preta. Noutra se encontrava “pra baixo” e o livro recomendado era Comédias para se ler na escola, de Luis Fernando Veríssimo, ou seja, mantendo a mesma linha de mexer com o humor daquela senhora. Neste “vai e vem”, Dona Adelaide leu muitos livros e foi se apaixonando por Aloísio Azevedo, Jorge de Lima, o outro Lima que é o Barreto, o outro Jorge que é o Amado, Paulo Mendes Campos, Rubens Fonseca, Ligia Fagundes Teles, Bernardo Carvalho, Rubens Figueiredo... .Ia melhorando no aprimoramento do gosto literário e também conseguia avançar na luta contra o câncer.

Fez a cirurgia para a retirada do tumor e as sessões de quimioterapia foram muito bem sucedidas em sua finalidade. Logo, com a ajuda divina, o amor da família, o apoio dos amigos, o tratamento acertado e a força da literatura; Dona Adelaide venceu a doença, e jamais abandonou os livros e a livraria.

Seu Tunico ficou muito feliz com a vitória daquela dona que ele aprendeu a gostar e ajudar. Continuou seu “sacerdócio” terapêutico e literário ainda por alguns anos até que numa manhã, após ajeitar alguns livros na estante, sentou-se para “degustar” uma obra que ele muito admirava: Memórias Póstumas de Brás Cubas. No meio da leitura, seu coração parou de bater. Recostou-se sobre a poltrona do micro escritório, deixando o livro aberto cair sobre o seu peito. Se ainda pudesse falar, como o personagem principal da história que recomeçara ler a instantes atrás, diria:

-- Morri da forma que desejava: no meu local favorito, praticando meu entretenimento predileto e com o livro do meu autor mais querido sobre o meu coração.

Foi sepultado com todas as honras de um literato. Todos que foram atendidos por ele no “consultório da alma”, os citados nominalmente e os não, compareceram ao enterro. Até mesmo a velhinha, em meio aos seus noventa e cinco anos, com seu Um manual de boa saúde. A família e dona Adelaide choraram muito. Acabou.

A filha de seu Antunes, Helena, assumiu a livraria já que seu irmão Paulo não tinha tempo por causa das múltiplas atividades no Escritório de Advocacia. Assim, ela ficou com a parte dele na herança e reformou a loja. Comprou a casa do lado e fez uma pequena lanchonete e um espaço com poltronas para os clientes lerem livros e confortavelmente tomarem o seu cafezinho. A livraria cresceu muito nas mãos de Helena, que igualmente amava os livros como seu pai. Pela manhã, deixava um gerente e dava aulas de história. À tarde, ficava na livraria e tentava fazer como o pai, dando sugestões de leitura, porém, não tinha a mesma habilidade de ouvir as pessoas como seu Antunes.

Em uma dessas tardes na livraria, vendo sua mãe, Dona Diná (ainda triste e chorosa pela perda do marido), as crianças Ellen e Joana sentadas em volta da avó ouvindo histórias contadas por ela; decidiu pegar para ler o último livro lido pelo pai. Ao abri-lo, achou uma folha meio amarelada contendo um texto com alguns erros de português, mas com uma história muito interessante. Lembrou-se de ter visto folhas iguais a essa na gaveta da mesa do agora bem mais espaçoso escritório de seu saudoso papai; pois foi até lá e pegou-as. Ao ler os textos, percebeu que seu Tunico anotava em forma de histórias as conversas que tinha com os clientes no famoso “consultório de psicologia literária”. Notou que ele preservou a identidade e os nomes das pessoas. Descobriu também que, ao longo dos textos, o inesperado escritor revelava vivências que ele mesmo desfrutara com os fatos narrados.

Helena não pensou duas vezes. Ela reformulou cada narrativa, e consertou os erros gramaticais, os de coesão e coerência textuais e publicou-os; dando ao livro a autoria do pai e o singelo título: O poder da literatura na vida da gente.

Seu Antunes morreu. Entretanto, seu legado permaneceu. Cumpriu seu papel de um verdadeiro livreiro, isto é, o de não apenas vender livros, mas, além e acima disso, o de espalhar o amor pela literatura.

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* TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009. p. 23.



(Gilmar Cabral. Conto retirado do livro Histórias Recolhidas)

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