* “Hoje se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver”.
(Tzvetan Todorov)
-- Olha o livro! Olha o livro!
Assim ia de porta em porta; de casa em casa, seu Antunes de Assis, ou
popularmente conhecido como seu Tunico. Desta forma começou sua aventura como
livreiro. Fazia isto desde a sua juventude. Gostou tanto do ramo que, com muito
esforço e dedicação, conseguiu abrir uma pequena livraria no bairro de Sãens
Pena, no Rio de Janeiro, perto de uma Universidade. Seu negócio, que espalhava
saber e instrução, ficou muito conhecido pelos alunos e professores
universitários que circulavam pelas redondezas. Porém, seu público não era
formado apenas por “intelectuais”. Ali também frequentavam pessoas comuns que
somente gostavam e gostam de literatura ou mesmo de uma boa leitura.
Seu Tunico já beirava a casa dos sessenta e cinco anos, era baixinho,
moreno, cabelos grisalhos, que impunham respeito além de sua conduta exemplar.
Casado com dona Diná e pai de dois filhos que, admirando o gosto do pai pelo
conhecimento, enveredaram pelos caminhos das letras: Paulo se tornou advogado e
Helena professora de História. Situações estas bem contrastantes com as de seu
Antunes, que assim como a esposa, só tinha o ensino fundamental incompleto;
parou por volta do sétimo ano, antiga 6ª série, isto para trabalhar e ajudar a
família de origem humilde. Dava-se muito bem com a esposa, mulher madura de
cinquenta e cinco anos e bastante companheira nas horas difíceis e alegres, era
seu grande amor.
Também mantinha bom relacionamento com os filhos, estes já casados e bem arrumados na vida. De cada um dos dois recebeu uma netinha: Ellen (8 anos) de Paulo e Joana (5 anos) de Helena. Umas gracinhas de crianças e que eram, junto com os pais, outro grande amor de sua vida. Morava numa casa simples, mas com dignidade, no bairro da Penha perto do Hospital Getúlio Vargas. Todavia, suas mais marcantes características eram: a humildade, a paciência e a paixão pelos livros, era um leitor voraz. Só deixava um pouco a humildade de lado quando se gabava do seu sobrenome “de Assis”. Pois fazia menção ao seu autor predileto: Machado de Assis.
Também mantinha bom relacionamento com os filhos, estes já casados e bem arrumados na vida. De cada um dos dois recebeu uma netinha: Ellen (8 anos) de Paulo e Joana (5 anos) de Helena. Umas gracinhas de crianças e que eram, junto com os pais, outro grande amor de sua vida. Morava numa casa simples, mas com dignidade, no bairro da Penha perto do Hospital Getúlio Vargas. Todavia, suas mais marcantes características eram: a humildade, a paciência e a paixão pelos livros, era um leitor voraz. Só deixava um pouco a humildade de lado quando se gabava do seu sobrenome “de Assis”. Pois fazia menção ao seu autor predileto: Machado de Assis.
No trabalho, sabia tudo. Tanto de vender como de conhecer as obras e os
clientes. Já havia lido quase todo o seu estoque de livros e fazia questão de
ler os lançamentos novos para poder indicá-los com mais segurança aos fregueses.
Aliás, em se tratando de conhecer o gosto e a vida dos clientes, não havia
ninguém igual ao seu Tunico. Recebia todos com muita atenção e entusiasmo.
Indicava livros, dando sugestões de leitura e, quando percebia que algo não
estava bem com a pessoa, se oferecia para uma conversa; é lógico que não tão
demorada para não atrapalhar o serviço e não deixar tudo nas costas dos dois
funcionários, que procuravam manter seus empregos e aos quais ele remunerava
com muito esforço. O certo é que essas conversas, que mais pareciam atendimento
psicológico, sempre acabavam em uma ou mais sugestão de livros. Não é que o
paciente e “psicólogo” livreiro estivesse se aproveitando dos problemas
alheios, não. Seu Tunico acreditava que para cada situação da vida, seja ela boa
ou ruim, há sempre uma literatura esperando para ser lida e assim agir de
maneira positiva para, quem sabe, ajudar na solução do problema.
O fato é que além de “consultório” (para os que andam com pressa e querem
soluções rápidas), a livraria passou a ser também vista como uma espécie de
“Farmácia”; sim igualzinha àquela que os antigos (embora isto ainda exista)
frequentavam e, por conhecerem bem o farmacêutico e este os seus familiares,
lhe pediam diagnósticos, sugestão de medicamentos; até por confiarem mais nele
do que nos médicos, não é mesmo?! Bem, nessa visão alegórica que une costumes
antigos, usos atuais e farmacológicos, seu Antunes funcionava como um desses
“farmacêuticos de plantão”. Ora fornecia pílulas de microcontos, provérbios e
pensamentos como calmantes. Ora indicava analgésicos de poesias drummonianas,
bandeirianas, murilianas, gullarianas, e assim foi.... Para alguns, “Medicava”
cápsulas de antidepressivos em forma de livros de piadas e histórias engraçadas
e, aos mais debilitados pelas “infecções” do intelecto e que estavam
acostumados com “medicamentos pesados” e “tratamentos demorados”, vendia os
romances históricos; desse jeito, alguns iam sendo “curados” e outros acabavam
por parar no “CTI das letras”, exaustos de leituras, mas cheios de
conhecimento.
Noutro dia, chegou um tal de Daniel, rapaz esguio, beirando seus 16 anos
e com o rosto cheio de espinhas. Estava com um problema “sério”: um
relacionamento mal resolvido com uma moça. Ao ouvir suas lamúrias, seu Tunico
consolou o jovem e indicou um desses romances para adolescentes e até que a
história da narrativa era parecida com a aventura amorosa do novel casal; e o
melhor, com final feliz. E a coisa foi seguindo assim. A cada dia uma novidade.
O senhor Hermes apareceu lá na livraria se queixando de problemas com os
seus filhos. Recebeu a indicação de um desses manuais para entender e educar
bem a prole. Voltou para agradecer o resultado.
-- Valeu seu Antunes! Foi batata! Agora já sei como lidar com os
moleques! Por favor, me indique um romance, pois tomei gosto por essa coisa de
ler.
Saiu com um exemplar de Esaú e
Jacó, do mestre Machado de Assis. Será que seu Tunico exagerou na dose?
Provavelmente não.
Ainda sobre problemas familiares, uma jovem chamada Sophia pediu conselhos
ao livreiro para saber como resolver a dificuldade de se relacionar com o pai.
Como era muito geniosa e farrista, o sábio comerciante colocou nas mãos dela
alguns romances bem românticos do tipo A
moreninha para ver se ela ficava meigamente amorosa e parava um pouco mais
em casa e aí, quem sabe, a conversa ficaria mais fácil com seu progenitor.
Estácio estava na pior por causa do desemprego. Entrou num sábado na
livraria, olhou os livros nas estantes e perguntou se não havia vaga na loja.
Seu Tunico, com uma prosa e meia de conversa, percebeu que o camarada tinha
“tino pro comércio”. Perspicaz como um descobridor de talentos, olhou para as
estantes, divisou um título, retirou-o de lá e o entregou ao futuro
comerciante, na realidade deu o livro para ele (já que o pobre não tinha no
bolso um tostão). O manual oferecia ao seu leitor a seguinte proposta: “Como abrir seu primeiro negócio”. O cara
saiu feliz da vida e nunca mais voltou.
Dona Aurora de 80 anos chegou numa segunda-feira, logo de manhã, após
acordar bem cedo e ir à padaria, como é costume dos anciãos. Com uma bolsa que
mais parecia para ir à feira do que a uma livraria, pediu alguma coisa que
melhorasse a sua saúde, pois não aguentava mais conviver com as suas
companheiras: a artrite, a artrose e as dores reumáticas. A princípio o dono do
estabelecimento pensou em indicar o Pronto Socorro mais próximo, porém depois
seu Tunico pensou: “os idosos também têm o direito a uma boa leitura”.
Entretanto, naquele caso específico, a indicação foi precisa: Um manual de boa saúde. A senhora de
cabelos branquíssimos agradeceu, comprou e, de vez em quando, passava folheando
o livro, dando aquele sorriso vazio, mas sempre simpático.
Ulisses apareceu com muitas dúvidas sobre como redigir tecnicamente a sua
Monografia de Final de Curso. Ele aparentava ter 20 anos. Negro, alto, usando
um par de óculos com lentes de “fundo de garrafa”, grossas, uma imagem bem
intelectual. Cursava Letras e portava alguns livros na mão direita e uma enorme
mochila nas costas. Perguntou ao seu Antunes sobre vários compêndios. Ao ouvir
tantas negativas do vendedor, começou a bater um desespero.
-- Senhor! Eu tenho que entregar a monografia semana que vem e hoje já é
sexta-feira. Por favor! Ajude-me a encontrar um manual que explique os detalhes
técnicos da redação acadêmica!
Seu Tunico primeiramente questionou:
-- Por que os professores não o orientaram quanto ao trabalho científico?
-- Eu...eu.. “matei” quase todas as aulas de “metodologia da pesquisa” e
agora tenho vergonha de recorrer aos professores.
Ouvindo a resposta, o ancião amante das letras desistiu de continuar o
interrogatório. Mesmo com “ar” crítico, Seu Tunico sugeriu uma obra propícia: Como redigir trabalhos acadêmicos. O
jovem comprou e agradeceu a sugestão. Outro dia passou por lá, com esse livro
na mão esquerda e a mochila murcha nas costas. Deu um “oi” pro dono da
livraria, entrou, comprou Grande sertão:
veredas e seguiu sem graça o seu caminho.
Mas não pense que somente de dificuldades amorosas, familiares, físicas,
e acadêmicas vivia a livraria. Não. Teodora surgiu de mansinho e trouxe consigo
uma experiência nova para o “consultório da alma” tão bem administrado por seu
Antunes, a saber, pediu sugestões de livros espirituais. Segundo essa gentil
senhora de olhar apreensivo, seu espírito precisava ser “tocado” por algo
transcendental. O calejado conversador, porém aprendiz de teologia,
apresentou-lhe livros devocionais, de meditações e de doutrinas. É claro que
não podia faltar a Bíblia já que seu
Tunico observou o cordão com uma cruz adornando o tenso pescoço daquela dona.
Aproveitou a oportunidade e vendeu, além dos livros religiosos, uma coletânea
de poemas de Adélia Prado, grande poeta que aborda as questões da alma com
beleza e riqueza de profundidade. Teodora retornou algumas vezes. Parecia mais
aliviada, entretanto, não largou mais a Adélia, Cecília, Cora Coralina, Clarice
Lispector...
Depois de lidar com os “embrulhos
espirituais”, o incansável livreiro testou seus conhecimentos de psicologia
infantil e de pedagogia, quando começou a conversar mais vezes com Rosa, uma
menina de 8 anos e que ia à tardezinha à livraria com a mãe para ver alguns
livros de literatura infanto-juvenil. Aos poucos ele foi percebendo que a
garota, por trás daquele sorriso gostoso e cativante, possuía um olhar triste e
distante.
Puxando conversa com a mãe da menina para ver se descobria algo que
explicasse aquele semblante paradoxalmente risonho e triste, seu Antunes
encontrou nela uma mulher fria e indiferente com relação à filha. O experiente
livreiro foi logo “matando” a charada. Parecia que o relacionamento entre as
duas não era “lá essas coisas”. Pelo jeito, a mãe dava tudo que a menina pedia,
mas não dava o mais importante: atenção, a conversa, a presença.
Pensando em melhorar a situação, seu Tunico mostrou alguns exemplares de
literatura infantil para a mãe e pediu que ela os lê-se, pois seria importante
que a menina visse o exemplo de leitura em sua própria casa. Além do mais,
aquela jovem senhora teria condições de conversar sobre as histórias com a
filha. Dito e feito. Não demorou muito para a garota voltar mais vezes à
livraria com um rosto iluminado e sem aquele olhar triste. Ao conversarem,
ficou nítido que a estratégia deu certo. Não apenas sua mamãe, mas também seu
papai se interessou pelos livros infantis. Agora liam juntos e conversavam
sobre histórias incríveis tais como: O
fantástico mistério de feiurinha, O
menino do dedo verde, A bolsa amarela,
O reizinho mandão, os contos de Perrault, dos irmãos Grimm e as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo... A autoestima da menina
subiu, e o mais interessante, a dos adultos também. Detalhe: sem precisarem de
livros de autoajuda. Isso foi muito legal.
Bem, não pode ficar de fora desse breve registro das “aventuras
terapêuticas” de seu Tunico, aquele que, sem dúvida, foi o caso mais marcante
dentre essas histórias de aconselhamento. O fato envolveu uma senhora de
quarenta anos chamada Adelaide. Ela frequentava toda semana a livraria. Olhava
um livro e outro, porém quase sempre não levava nenhum. Seu Antunes percebeu
isso e logo se aproximou para entender se era a falta de opções de sua loja ou
se havia alguma outra situação que ele desconhecia. Isto é, aquelas de fórum
íntimo que ele tão bem aprendia a cada dia escutar.
No início, Dona Adelaide recusou a aproximação. Deu mostras que apenas
queria comprar um determinado livro que, semana após semana, procurava, mas não
encontrava. Esta atitude não convenceu o determinado conselheiro, mesmo porque
a dona já apresentava sinais de aflição. Assim, ele insistiu buscando sempre um
argumento para esticar a conversa, tornando-a mais agradável e próxima.
Até que um dia Dona Adelaide chamou o dono da livraria, revelou-lhe seu
nome e pediu uma conversa em
particular. Ela estava aflita. Seu semblante descaído. Suas
mãos trêmulas e a boca seca. De morena ficou branca. Seu Tunico rapidamente
puxou-a para uma cadeira no seu cubículo que ele chamava de escritório. Deu um
copo de água para a senhora e notou que as lágrimas já começavam a escorrer
pelo seu rosto relativamente bonito, mas marcado pelo sofrimento angustiante
como o de quem guarda um segredo e o sufoca até não poder aguentar mais.
Aquela ansiosa senhora começou o diálogo falando que tinha uma família
linda. Dois filhos já rapazes formados tanto na estatura quanto na maturidade.
Elogiou muito seu esposo dizendo o quanto ele era bom para ela e para os
filhos. Trabalhador, honesto e que nunca deixava faltar nada em casa. Inclusive,
reformava-a sempre almejando a melhor estética aliada a um bom conforto. Quis
dizer que possuía motivos de sobra para ser feliz. Isso deixou seu Antunes
preocupado. Ele pensou: “será que esta mulher traiu o marido?!”. Mesmo
apreensivo com esta possibilidade, tomou coragem e perguntou:
-- Então, por que a senhora está desse jeito, tão aflita se tem tanta
coisa boa em sua vida?
Adelaide respirou fundo e disse:
-- Há três meses eu fui ao médico para saber o resultado de um exame,
mamografia. E recebi a notícia que toda mulher nunca deseja ouvir. Estou com um
nódulo em uma das mamas. Ao escutar isso, as forças me faltaram e parecia que o
chão havia sumido debaixo dos meus pés. A doutora me tentou tranquilizar e
falou que podia ser benigno e que eu deveria esperar a biópsia. Na semana
seguinte, fiz o exame e somente hoje tive coragem para pegar o resultado. Deu
positivo. Estou com câncer. Tenho poucas amigas por aqui, porém não consegui
falar sobre isso nem com a minha família. No auge do desespero, pensei no
senhor e na sua fama de ajudar os outros. Por favor, o que eu faço? Como contar
isso para meu marido e meus filhos?
O inseparável amigo dos livros pensou, pensou e pensou. E falou:
-- Dona Adelaide, por mais difícil que seja, precisa contar a eles. A sua
família tem o direito de saber. E, além disso, eles poderão ajudá-la muito mais
do que eu nesse processo doloroso e desgastante. Hoje, mais do que nunca a
senhora precisa da força e do amor deles para superar esse período. Vá para
casa, reúna forças e, quando achar o momento apropriado, conte a seu marido e
seus filhos. Isso vai fazer bem para a senhora também.
Dona Adelaide atendeu o conselho do livreiro e foi para casa.
Três semanas depois ela voltou mais confiante. Havia contado aos seus o
fato da doença e tinha realizado a primeira consulta com uma mastologista,
especializada em oncologia. Ia realizar uma cirurgia para remover o tumor e
iniciar sessões de quimioterapia. Estava esperançosa porque o nódulo era
pequeno e se encontrava na fase inicial, portanto as chances de cura eram
altas. Sua família havia reagido bem na medida do possível. O esposo foi firme,
embora tenha ficado chocado. Os filhos ameaçaram desespero e choradeira, mas
Dona Adelaide foi muito forte e disse que necessitava do apoio deles e que para
isso eles deveriam estar bem. Contou com detalhes a conversa e a reação de sua
família para seu Antunes.
Depois de ouvir tudo, seu Tunico quis trazer a conversa para o mundo da
literatura a fim de amenizar o papo e de dar um incentivo literário à vida de
Dona Adelaide. Assim, combinou com ela que o “tratamento” seria o seguinte: a
cada semana lhe indicaria um livro de acordo com o seu “estado de espírito”. E
foi isso o que aconteceu.
Numa semana ela estava mais alegre e seu Antunes lhe indicava textos de
Stanislau Ponte Preta. Noutra se encontrava “pra baixo” e o livro recomendado
era Comédias para se ler na escola,
de Luis Fernando Veríssimo, ou seja, mantendo a mesma linha de mexer com o
humor daquela senhora. Neste “vai e vem”, Dona Adelaide leu muitos livros e foi
se apaixonando por Aloísio Azevedo, Jorge de Lima, o outro Lima que é o
Barreto, o outro Jorge que é o Amado, Paulo Mendes Campos, Rubens Fonseca,
Ligia Fagundes Teles, Bernardo Carvalho, Rubens Figueiredo... .Ia melhorando no
aprimoramento do gosto literário e também conseguia avançar na luta contra o câncer.
Fez a cirurgia para a retirada do tumor e as sessões de quimioterapia
foram muito bem sucedidas em sua finalidade. Logo, com a ajuda divina, o amor
da família, o apoio dos amigos, o tratamento acertado e a força da literatura;
Dona Adelaide venceu a doença, e jamais abandonou os livros e a livraria.
Seu Tunico ficou muito feliz com a vitória daquela dona que ele aprendeu
a gostar e ajudar. Continuou seu “sacerdócio” terapêutico e literário ainda por
alguns anos até que numa manhã, após ajeitar alguns livros na estante,
sentou-se para “degustar” uma obra que ele muito admirava: Memórias Póstumas de Brás Cubas. No meio da leitura, seu coração
parou de bater. Recostou-se sobre a poltrona do micro escritório, deixando o
livro aberto cair sobre o seu peito. Se ainda pudesse falar, como o personagem
principal da história que recomeçara ler a instantes atrás, diria:
-- Morri da forma que desejava: no meu local favorito, praticando meu entretenimento
predileto e com o livro do meu autor mais querido sobre o meu coração.
Foi sepultado com todas as honras de um literato. Todos que foram
atendidos por ele no “consultório da alma”, os citados nominalmente e os não,
compareceram ao enterro. Até mesmo a velhinha, em meio aos seus noventa e cinco
anos, com seu Um manual de boa saúde.
A família e dona Adelaide choraram muito. Acabou.
A filha de seu Antunes, Helena, assumiu a livraria já que seu irmão Paulo
não tinha tempo por causa das múltiplas atividades no Escritório de Advocacia.
Assim, ela ficou com a parte dele na herança e reformou a loja. Comprou a casa
do lado e fez uma pequena lanchonete e um espaço com poltronas para os clientes
lerem livros e confortavelmente tomarem o seu cafezinho. A livraria cresceu
muito nas mãos de Helena, que igualmente amava os livros como seu pai. Pela
manhã, deixava um gerente e dava aulas de história. À tarde, ficava na livraria
e tentava fazer como o pai, dando sugestões de leitura, porém, não tinha a
mesma habilidade de ouvir as pessoas como seu Antunes.
Em uma dessas tardes na livraria, vendo sua mãe, Dona Diná (ainda triste
e chorosa pela perda do marido), as crianças Ellen e Joana sentadas em volta da
avó ouvindo histórias contadas por ela; decidiu pegar para ler o último livro
lido pelo pai. Ao abri-lo, achou uma folha meio amarelada contendo um texto com
alguns erros de português, mas com uma história muito interessante. Lembrou-se
de ter visto folhas iguais a essa na gaveta da mesa do agora bem mais espaçoso
escritório de seu saudoso papai; pois foi até lá e pegou-as. Ao ler os textos,
percebeu que seu Tunico anotava em forma de histórias as conversas que tinha
com os clientes no famoso “consultório de psicologia literária”. Notou que ele
preservou a identidade e os nomes das pessoas. Descobriu também que, ao longo
dos textos, o inesperado escritor revelava vivências que ele mesmo desfrutara
com os fatos narrados.
Helena não pensou duas vezes. Ela reformulou cada narrativa, e consertou
os erros gramaticais, os de coesão e coerência textuais e publicou-os; dando ao
livro a autoria do pai e o singelo título: O
poder da literatura na vida da gente.
Seu Antunes morreu. Entretanto, seu legado permaneceu. Cumpriu seu papel
de um verdadeiro livreiro, isto é, o de não apenas vender livros, mas, além e
acima disso, o de espalhar o amor pela literatura.
________________________
* TODOROV,
Tzvetan. A literatura em perigo.
Rio de Janeiro: Difel,
2009. p. 23.
(Gilmar Cabral. Conto retirado do livro Histórias Recolhidas)
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