sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Educação Bancária



            Talvez alguém ao ler o título deste conto possa pensar que este texto vai abordar uma tese bem conhecida no meio Educacional, a saber, a teoria da “Educação Bancária” versus a teoria da “Educação Problematizadora”, do grande mestre brasileiro Paulo Freire. Não é bem isso. Na verdade, não é nada disso; embora até haja a possibilidade de se pensar esta narrativa tanto do ponto de vista de uma proposta de fazer do outro (no caso o leitor) um depósito de informações (Educação Bancária), quanto da forma de ver o outro (o mesmo leitor) como um ser pensante e que tem condições de analisar criticamente as informações a ponto de problematizá-las de tal modo a tirar conclusões autônomas (Educação Problematizadora). Espero que você seja um tipo de leitor da segunda hipótese. Portanto, vamos lá!  

            O que passo agora a narrar aconteceu comigo um dia desses em que fui ao Banco fazer uns pagamentos e sacar uns tostões. A bem da verdade, isto acontece quase sempre que vou ao Banco e creio que acontece com você também; pois, é praticamente rotineiro o Banco estar cheio, não é mesmo? Mas naquele dia foi especial ou incrivelmente absurdial! Bom, cheguei e vi a fila “quilométrica” (para variar), e isto era a fila do caixa eletrônico que, para meu desespero, só havia um funcionando, dos cinco ali instalados. A coisa tava tão feia, que nem o ar-condicionado do recinto funcionava. Brincadeira! Devia ter uns trinta na minha frente. Detalhe: destes, uns dez eram de velhinhos que não enxergavam nem o rei momo a dois metros de distância. Que dureza! E cada um, que custosamente chegava ao caixa, chamava um daqueles assistentes ou atendentes adolescentes que, sem paciência nenhuma, atendiam mal e aí faziam com que os velhinhos os chamassem novamente. Não é mole não! Sem contar, que o “sistema” estava parando toda hora. Fala sério!

            Fazer o quê? Precisava dos serviços bancários. O jeito foi aturar. Me aproximei bem perto da fila e fiz a tradicional pergunta:

            _ A senhora é a última da fila? Ao que ela respondeu:

            _ Sim, miseravelmente sou!

            Já deu pra eu sentir que o negócio estava ruim mesmo. Fiquei calado. Falar o quê? Tá doido, tomar um fora de graça! Daqui a pouquinho chegou um, dois, três, quatro... atrás de mim. A fila se estendeu mais. Era por volta de onze horas da manhã, e já havia umas cinquenta pessoas esperando a mórbida lentidão da fila andar.

            Não demorou muito, pois já aconteciam alguns comentários de insatisfação e desaprovação da coisa, para os protestos aumentarem:

            _ Bota mais caixas eletrônicos, seus mãos de vaca!

            _ Isto é um absurdo! Que que estes donos de Banco estão fazendo com o dinheiro do povo?! Por que não fazem manutenção nessas máquinas ou então trocam elas, meu Pai!?

_ O povo tem que sofrer mesmo, não é?!     

Eu também, que não sou de ferro, comecei a chiar fazendo coro com eles:

_ Isso é tudo uma corja que só sabe endinheirar-se a custas do suor do povo brasileiro!

E recebia a aprovação do povo:

_É isso mesmo, cara!

Só que, vendo que os protestos não adiantavam, percebi que as pessoas começaram a trocar o lado do disco, isto é, passaram a falar sobre outros assuntos: uns interessantes, outros ridículos e outros emocionantes. Vou começar pelos interessantes. Falamos sobre a crise econômica e política do sistema capitalista mundial, o governo Dilma, a questão da violência, a crise política no Oriente Médio, a sucessão presidencial americana, o custo de vida em algumas capitais do país e as suas diferenças, as novas descobertas científicas para a cura da AIDIS e do câncer, os buracos não, as crateras na camada de ozônio, os novos tratamentos fitoterápicos para doenças crônicas,... etc.... Nessa, eu interagi com uns quinze. Foi legal. Aprendi muita coisa que eu não sabia sobre esses e muitos outros assuntos que conversamos ali. É lógico que cada um tinha a sua opinião e, às vezes, divergíamos, discutíamos, mas tudo acabava bem, apesar da irritação com a demora na fila.

Porém, não posso deixar de falar sobre os “causus” ridículos que ouvi e vi ali. Teve uma mulher que estava a três pessoas na minha frente, mas virada para trás. Como aquela senhora era ridícula! A começar pela roupa. Devia ter uns cinquenta e cinco anos, todavia queria ainda ser “garotinha”. Usava uns meiões coloridos com uma saia minúscula, além de um “tomara que caia”, que cá pra nós, nem precisava ter esse nome porque já estava tudo caído mesmo, mas vamos lá! E a boca? Com um batom vermelhaço! Olhos azuis em todos os sentidos e um cabelo que parecia do palhaço Bozo. Que que era aquilo?! E a conversa? Só vantagem:

_ Sabem, já namorei tanto e até hoje ainda me querem. E eu me perguntava: “quem vai querer isso?! Só  desesperado ou cego.” Ela insistia:

_ Essas menininhas de hoje têm que aprender comigo como ser sensual.

Aí eu ri........Brincadeira!

Com esta senhora aprendi que bom senso e senso de ridículo não fazem mal a ninguém. Mas não parou por aí o meu aprendizado naquele dia. Um rapaz, muito mal humorado, reclamava o tempo todo, porém não era da fila interminável, era de sua família. Chamava o pai de beberrão, a mãe de lesada, os irmãos de cínicos e a esposa de abestalhada. Pelo jeito não tinha filhos; ainda bem para os pobrezinhos. O cara era um chatonildo de galocha. Ninguém mais aguentava ele falando horrores de seus parentes. Não escapava ninguém. Até um sobrinho recém chegado levou o “apelido” de estorvo.  Estorvo era esse cara. Ele encheu tanto a nossa paciência que um brutamontes que estava no final da fila, já injuriado com a demora, bradou:

_ Cala a boca aí o estrume! Chega de denegrir a sua família ó palhaço!

O rapaz (que deveria se chamar “Malito Sem Alça da Silva”) até esboçou retrucar com palavrões, mas de bobo não tinha nada e, ao perceber o tamanho da encrenca que arrumaria, ficou na dele. Ufa! Todos suspiraram. Até que enfim ele se calou. Aprendi com o “malita” a não manchar a imagem da minha família, pois, apesar de suas limitações e dificuldades, é a nossa família e ninguém gosta de ouvir falar mal da família porque vê a sua própria refletida nas palavras agressivas.

Todavia, o silêncio durou pouco. Uma criança de quatro anos danou a perturbar a fila. Estava com o seu pai, no entanto é como se estivesse sozinha. Pintou e bordou com a cara do homem. E se jogava no chão e o homem a levantava e dizia:

_ Para, filho. Não faz isso senão papai fica triste...

O garoto nem aí. Rolava pelo chão. Pulava. Gritava. Chorava. Com agressividade falava:

_ Me dá! Eu quero o boneco do Ben 10!

O pai paciente dizia:

_ Filho, papai não tem o dinheiro suficiente aqui na carteira para comprar. E o garoto:

_Tem sim, seu mentiroso!

O pai, sem graça, dizia para nós:

_Ele é assim mesmo. Depois ele acalma. Eu sou paciente, compreensivo, um bom ...

Aí eu no pensamento completei: “E um bom painaca”! Que frouxo!

Vencido pelo filho, o “boneco” foi embora comprar o boneco. Não é mole não! Neste episódio entendi como não se deve ser pai.

Um outro bem na minha frente virou-se para mim e os demais, e começou a dizer o que ia fazer com o dinheiro do fundo de garantia por tempo de serviço. Até aí tudo bem. O problema é que ele cuspia pra dedel quando falava. Misericórdia! Era uma chuva de saliva. Tem mais: acho que ele tinha bebido ou cheirado alguma coisa porque dizia que faria tanta coisa com aquele dinheiro. Só que nem me lembro direito o que ele pretendia, pois a “chuva” era tanta que não conseguia pensar em outro fato a não ser me livrar do “Tiozinho Cospe Cospe”. Aprendi que não se deve falar tão perto das pessoas, principalmente se você tem um chuveiro na boca, e nem ficar com ideias mirabolantes de compra com apenas uma mixaria para receber. Tá doido! Que frustração aquele coroa deve ter tido!

O caso mais ridículo foi uma discussão entre um casal quase no fim da fila. A mulher, feia pra lascar, cobrando do homem, outro feiosão, o fato dele ter chegado tão tarde na noite anterior, em casa.

_ Onde você esteve seu sem-vergonha?!       

_ Não te interessa mulher!

_ O quê?! Você sai, bebe todas e se envolve nas imundícies com as mulheres da rua, e vem me dizer que  não me interessa?!

_ Tá vendo! Se você já sabe o que eu fiz pra que que perguntou?!

_ Pra isso! E deu na cara do homem. Mas foi um tapa tão bem chapado, que o homem deve estar até hoje vendo estrelas. E a seguir emburacou pra cima dele: tapas, socos, ponta-pés, palavrões, unhadas, puxões de cabelo... Não deu pro cara nem reagir. Já não tinha muitos dentes. Acho que deve ter sobrado somente uns dois na boca porque, pelo jeito, já estava tudo mole de cárie mesmo; eram “cotocos”. Enfim, chegou a turma do “deixa disso”, tudo se acalmou. Meu aprendizado foi claro: ser fiel até a morte e não chegar tarde em casa.

Entretanto, tenho que citar o fato do meu cabedal de conhecimentos também ter sido acrescido de experiências emocionantes. Ouvi histórias de amores não correspondidos, de crianças desaparecidas, de famílias que sobrevivem com pouco dinheiro, mas possuem amor e companheirismo; ouvi histórias de pessoas que trabalham como voluntárias em Hospitais como os que tratam pacientes com câncer, todavia uma história que gostaria de compartilhar falou muito comigo. Foi a que ocorreu com uma garotinha de 5 anos, que estava com a avó (para mim até essa altura dos fatos era apenas avó da menina) na fila. Mesmo elas tendo ido para a fila de idosos, que finalmente foi restabelecida, deu para escutar um pouco do caso. 

A menina havia sido encontrada numa sacola plástica dos Supermercados Guanabara, junto com as bolsas de lixo duma esquina, do bairro de Cavalcante. A avó, ou melhor, mãe de criação da menina foi quem a encontrou. Naquele dia, havia saído cedo de casa, como de costume, para ir ao médico a fim de realizar uma consulta de rotina. Quando a idosa chegou perto dum poste onde ficavam as sacolas de lixo esperando pelo Lixeiro passar, ouviu o choro do bebê. Aflita, à priori não acreditou que pudesse ser uma criança. Mas, ao se aproximar mais ainda, percebeu que se tratava de um neném recém-nascido. Pegou a criança e rapidamente tomou um táxi e foi para o Hospital mais próximo. A garotinha tinha apenas 12 horas de recém chegada ao mundo. No início, foi muito difícil. Quase que a criança não sobreviveu. Após três meses de acompanhamento médico diário, a menina foi liberada. Ficou inicialmente sob os cuidados do Conselho Tutelar da Cidade. A bondosa velhinha quis a guarda da criança e entrou com um processo de adoção. Com a ajuda divina e a simpatia da juíza, tudo foi resolvido e a criança teve seu lar. Ali estava ela, bela, sorridente e feliz com a sua vovozinha-mãe. Uma história que tinha tudo para ser trágica, virou uma bela crônica de amor que faz bem pra vida.

As lições foram imediatas: se há pessoas capazes de jogarem um ser humano indefeso no lixo, sempre também haverá seres humanos capazes de realizarem grandes atos de amor e de acolhimento; há! Também: é preciso ficar atento, pois numa esquina pode estar uma linda experiência e a mudança radical da nossa vida. 

Por fim, chegou a minha vez de ir ao caixa eletrônico. Que absurdo! Esqueci a senha! Depois de tanto tempo esperando, já com as pernas cansadas! Tive que voltar no outro dia. Lições: nunca esqueça a senha ou então, para não acontecer isso, leve-a registrada num papel. Porém, cuidado! Alguém pode ler ou copiar a sua senha. Atenção com o ataque da “saidinha de banco”! Fique esperto! Se for possível, não tire dinheiro grande, a não ser que esteja acompanhado. Seja cuidadoso. Não fui, me ferrei!


(Gilmar Cabral – conto publicado no livro Histórias Recolhidas)

Nenhum comentário:

Postar um comentário