terça-feira, 17 de junho de 2014

A Outra Face do Perdão




Se vocês perdoam a alguém, eu também perdoo; e aquilo que perdoei, se é que havia alguma coisa para perdoar, perdoei na presença de Cristo, por amor a vocês.

                                (II Coríntios 2:10-NVI)
 
Às 21 horas em ponto, Marluce chegou da Igreja. Seus pais estranharam a hora já que quase sempre o ensaio do conjunto de adolescentes atrasava e a moça acabava por chegar quarenta minutos após as nove horas da noite. Na verdade, não havia muita preocupação com o atraso, pois, além de estarem acostumados, a filha vinha acompanhada por outras colegas.

            Porém, não foi apenas o horário que estava estranho. A aparência de Marluce também não era a mesma. Ela sempre chegava alegre dos ensaios e muito falante. Todavia, dessa vez, chegou “murcha”, com a “cara fechada” e um “ar” de aborrecida. Tomou banho. Fez um lanche rápido na cozinha e foi-se deitar.

Sua mãe, como toda mãe zelosa, dirigiu-se ao quarto e fez como todas as noites, ou seja, orou com a jovenzinha agradecendo pelo dia e pedindo uma noite agradável de sono. Tentou começar uma conversa sobre o que tinha acontecido, mas, ao perceber que a filha não respondia aos questionamentos com vontade, achou melhor conversarem pela manhã.

Logo cedo, após o café e antes de Marluce ir ao colégio, sua mãe (assim como o pai), crente fiel e cuidadosa com as coisas de Deus, perguntou o que havia acontecido para ela ter chegado com “aquela cara” do ensaio. Marluce tentou se esquivar, mas não teve jeito. Não conseguia disfarçar a insatisfação com aquilo que havia ocorrido na noite anterior. E contou:

_ Tive um aborrecimento com a Flávia.

_ Flávia?

_ Sim, a filha do regente do Coral.

_ Mas, o que houve?

_ No intervalo do ensaio, lá na cantina, ela disse que eu não tinha condições de cantar e que minha voz era muito feia. Eu não aguentei e falei que ela é quem tinha uma voz de “taquara rachada”. A discussão aumentou, eu me aborreci muito, abandonei o ensaio e fui embora.

_ É... Agora entendo o porquê daquela “cara”... Olha minha filha, eu sei que a moça a chateou, mas acontece que você também errou. Você também a ofendeu. A Palavra de Deus diz que nós devemos “dar a outra face” e “andar mais uma milha” com quem nos ofende. Isto significa absorver a ofensa e tentar a reconciliação com esta pessoa através do perdão. Até mesmo a oração do Pai Nosso nos diz que Deus só “perdoará as nossas ofensas se nós perdoarmos a quem nos tem ofendido”. 

_ Eu sei mãe! Já aprendi isso com a senhora e na Escola Bíblica, porém fazer é tão difícil!...

_ Mas minha querida, é aí que provamos verdadeiramente se o amor de Deus está em nós. Em I João 4:20 (NVI), está escrito: Se alguém afirmar: eu amo a Deus mas odiar seu irmão, a quem vê, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.

_ Está bem mamãe! Vamos orar agora para que Deus retire essa mágoa do meu coração?

_ Claro!

Ambas oraram. Marluce foi para o Colégio. Ao chegar à tardinha, tomou banho, se alimentou e preparou-se para a reunião de oração. Queria chegar mais cedo para falar com a Flávia, pois sabia que ela normalmente chegava antes do início da programação para “passar” o som e os louvores que seriam cantados. Dito e feito. Lá estava ela no portão da Igreja. Marluce se aproximou e Flávia fez como quem ia entrar, mas Marluce a chamou alto:

_ Flávia! Você tem uns quinze minutos para mim?

_Num sei, você me magoou muito dizendo que eu tenho uma “voz de taquara rachada”. Se você não sabe, quando era pequena, eu tive um problema sério de garganta e quase fiquei sem voz, por isso que ela é um pouco estridente. Suas palavras foram duras e me fizeram lembrar o drama que passei junto com meus pais, indo de hospital em hospital até conseguir a cura para minha doença. Como meus pais fizeram uma corrente de oração para a minha restauração, prometi a Deus, em forma de gratidão, que iria sempre, enquanto tivesse vida, louvá-lo e engrandecê-lo com a minha voz. Sei que Ele a recebe mesmo não sendo tão bonita como a sua.

_Mas, espere Flávia, você no intervalo do ensaio disse que minha voz era feia por isso que a discussão começou...

_Na verdade, eu tenho inveja de sua voz, Marluce, por isso que disse aquilo, foi puro despeito. Eu estava errada e pensei que você não quisesse mais falar comigo depois do que ocorreu ontem na cantina. Confesso que não sei como cantei na parte final do ensaio. Fiquei muito chateada com a situação, mas principalmente com a minha atitude. Fui grosseira e agressiva com você. Ao chegar à minha casa, conversei com meus pais e reconheci que errei. Eles me fizeram entender que Deus deu a cada pessoa o que Ele quis entregar. A mim, deu esta voz que não é bonita, mas serve para louvá-lo e a você, deu uma voz admirável. Portanto, você também tem o direto e até mesmo o dever de louvá-lo, em gratidão por ter recebido uma bela voz. Estava pronta para pedir o seu perdão, mas quando a vi há instantes, meu coração se fechou. Mas tenho que vencer isto: peço seu perdão.

_ Eu também errei. Eu ofereço a você o meu perdão e peço o seu, pois eu também a ofendi. Sabe Flávia, ouvindo você contar uma parte da sua história de enfermidade, que eu não conhecia, e pensando nas palavras que minha mãe me falou, aprendi que o perdão tem outra face que eu não conseguia ver: a face da restauração. Sem saber ou sem desejar isso, eu a ofendi profundamente por causa de seu histórico de saúde. Como às vezes a palavra machuca além do que imaginamos né? Descobri que o perdão funciona como um remédio que restaura as feridas da alma, por mais profundas que elas estejam fincadas. Quando pensava em pedir perdão a alguém, eu só via uma face do perdão, a da humilhação. Eu dizia: “Eu vou ficar por baixo e ser a boba da história a me humilhar, nem morta!” Somente via essa face. Hoje vejo a outra, aquela que vem depois da postura humilde: a possibilidade da restauração e da cura das feridas. Então, estou perdoada?

_ Sim, está perdoada!

_Tá vendo! Seu semblante, sua face, já é outra daquela de quando você chegou aqui. Está mais serena e alegre.

_ A sua também está bem melhor. É a face do perdão.   

Ambas se abraçaram e, juntas, “passaram” o som. Unidas também cataram e a celebração, agora sim, foi uma bênção!  



 Reflexão:

Em minha opinião, existem dois grandes momentos no Antigo Testamento que nos emocionam cada vez que lemos essas histórias, a saber, o encontro de Jacó com seu irmão Esaú, onde ocorre o perdão mútuo, após a desavença na venda e usurpação do direito de primogenitura e da bênção patriarcal (Gn 33). O outro momento é o perdão de José dado aos seus irmãos bem representado quando ele dá-se a conhecer a eles, após ser traído e vendido  (Gn 45). Tanto num evento quanto no outro, podemos ver o poder restaurador da prática de perdoar. Um fator importante é que não foi por acaso que os dois casos referem-se às desavenças e ao perdão entre irmãos. Essas situações são mais comuns do que pensamos.

Outro aspecto interessante é que o perdão não é apenas para restaurar as grandes feridas que perpassam a nossa alma, causadas pelos grandes traumas e decepções da vida. O perdão também é para ser exercido no dia a dia, nos fatos ou atitudes aparentemente triviais.

Na história do perdão entre Marluce e Flávia, o caso foi aparentemente corriqueiro, mas como a própria narrativa esclareceu, havia implicações nas palavras de ofensas que poderiam ter criado situações muito mais complicadas de serem resolvidas depois. Aquilo que pode parecer sem significância maior, pode ser uma brecha perigosa para a discórdia e para a perturbação pessoal, familiar, social e espiritual.

Como no reencontro entre Esaú e Jacó, as adolescentes da história perceberam que a face delas havia mudado com a concretização do perdão. Na passagem bíblica, Jacó chega a afirmar que via o rosto de seu irmão como se estivesse vendo o rosto de Deus (Gn 33:10).  O que é isso? É que a face de Deus é o perdão. Quem perdoa se parece com Deus. E você? Será que não necessita de perdoar alguém? Ou buscar o perdão de alguém? Faça isso hoje e o seu rosto e o seu coração também ficarão parecidos com os de Deus.           

 (Gilmar Cabral)









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