Quem goza apenas do presente não
sabe dar o correto valor aos benefícios da existência; quer o futuro quer o
passado nos podem proporcionar satisfação; o primeiro pela expectativa, o
segundo pela recordação; só que enquanto um é incerto e pode não se realizar, o
outro nunca pode deixar de ter acontecido.
(Lucius Annaeus Seneca)
1
O relógio despertou às seis horas da
manhã, como ocorria todos os dias, menos nos fins de semana. Ao deixar a cama
desarrumada, foi lentamente fazer a sua higiene pessoal: um banho arrojado e
uma bela escovada de dentes. Olhou-se no espelho do banheiro e, diferentemente
do dia anterior, que foi um feriado, não viu uma imagem cansada e marcada pelos
testes da vida. Ao contrário, percebeu-se mais jovem; rosto mais liso, sem
acumular tanto os sinais do tempo e o desgaste da vida Pós-moderna. Antes de
esquentar a água para o café, lembrou-se de olhar o seu celular para conferir
se não necessitava de ser recarregado. Acionando o pequeno equipamento
eletrônico, percebeu que não só estava funcionando como notou que a hora estava
certinha: eram seis horas e trinta e cinco minutos da manhã, pois conferia com
a do relógio pendurado na parede da sala.
Surpreso, percebeu uma ligação feita
há aproximadamente quinze minutos atrás, provavelmente não escutou o telefone
tocar por estar no chuveiro, mas viu a identificação da chamada, o que o deixou
ainda mais surpreso, pois descobriu que o número pertencia a uma colega de
trabalho desaparecida há aproximadamente dois anos e nove meses. Tentando refazer-se
do susto, passou a conjecturar: “talvez seja alguém que tomou posse do telefone
ou mesmo do chip após o sumiço da colega”. Ou então, pensou que algum familiar
tivera acesso ao telefone dela de alguma forma e agora resolveu usá-lo,
acionando o número dele por acidente. Enfim, procurava uma explicação, respostas
que fossem pelo menos plausíveis para aquele fato; não conseguia entender e
dizia consigo mesmo: “é praticamente impossível que seja de Camily, já faz
tempo que ela sumiu e até foi dada como morta pela Polícia!” Telefonou
devolvendo a ligação, mas só escutava “fora de área”. Perturbado, Alisson
observou que a data do dia estava errada, pelo
menos é o que ele pensava. Era para ser dezesseis de novembro de dois
mil e onze, mas no celular marcava vinte e sete de fevereiro de dois mil e nove.
Pensou: “esse celular endoideceu!”
Mas como começava a notar que as coisas não estavam muito normais, decidiu
ligar a TV para confirmar a data certa: 16/11/2011. Ao ligar, logo constatou
que a data estava confirmada, porém não a que permeava seu pensamento, mas sim
a que incrivelmente ecoava em seus ouvidos, após ouvir a fala de uma
apresentadora do telejornal da manhã: 27/02/2009. Sem café, sem chão e sem
entender nada, sentou-se no sofá da sala e continuou a assistir à TV, tentando
encontrar uma explicação lógica para o que estava acontecendo. Não achou. Achou
sim a programação dos canais bem familiares, todavia, estranhas, não fazendo sentido,
não tendo relação com o contexto daquele momento histórico. Por exemplo, o noticiário
sobre os atos do poder executivo estava vinculado às ações do Presidente Lula e
não às ações da Presidenta Dilma Rousseff. Não conseguia entender nada. Confuso,
passava pelos canais e comprovava ainda mais a veracidade do dia inusitado; era
realmente dia vinte e sete de fevereiro de dois mil e nove.
Levantou-se do sofá e se dirigiu à
cozinha para finalmente esquentar a água do café. Queria beber alguma coisa,
sentir que tudo era real e não um sonho ou pesadelo. Notou a cozinha um pouco
diferente, mas logo descartou que o que temia pudesse estar acontecendo;
poderia ainda estar dormindo, sonâmbulo. Cogitou até se beliscar para comprovar
se estava mesmo acordado, entretanto, desistiu achando ridículo esse procedimento.
Alisson sempre foi assim: procurava manter o controle mesmo em situações
difíceis ou embaraçosas. Este jovem de trinta anos, loiro, olhos azuis, pardo, solteiro
e bem postado na vida; aliás, além da aparência agradável, outro ponto que contava
para que muitas moças quisessem namorá-lo é, sem dúvida, sua estabilidade
financeira. Trabalhava como gerente de marketing de uma grande Multinacional de
acessórios para veículos de todas as marcas e linhas; um grande funcionário,
aplicado no trabalho e eficiente na comunicação. Era muito extrovertido, mas sempre
com cautela e bom senso, principalmente, no uso das palavras e dos gestos.
Sabia que estava sendo constantemente observado por seus liderados e por seus
superiores. Queria deixar sempre a melhor impressão e buscava isso no dia a dia
da Empresa.
Camily, a então amiga sumida, era
gerente também na mesma Empresa, só que de produção. Moça bonita, morena, cabelos
longos, mas sempre jogados para trás e presos, olhos castanhos, bastante
introvertida e com falar terno. Ao oposto de Alisson, era muito mais calada e
pensativa. Porém sabia gerir sua área como poucos. Não conhecia muito bem o
Alisson, praticamente mantinha com ele apenas um relacionamento de colega de
trabalho, embora participasse das mesmas reuniões sobre o andamento da Firma.
Até tinha o seu número de telefone caso precisasse de um contato por causa de
alguma questão do trabalho, como também dera o seu número a ele para este mesmo
fim. Mas..., raramente ligavam-se. Isto também foi um dos motivos de espanto do
rapaz ao ver o número de Camily em seu celular: “por que ela me ligaria? Quase
não falo com ela? E a essa hora da manhã!”.
Tentando dar normalidade a tudo, aprontou sua refeição matinal, como
sempre: uma xícara quase transbordando pelas beiradas com um café forte, bem
preto, duas fatias de pães de forma tostados na torradeira e depois amaciados
com uma saborosa e considerável passada de manteiga. Ainda tinha pedaços de
queijo Minas e uma fatia de mamão. Às vezes, não foi o caso desse dia, ele
substituía o café por um copo de suco de laranja, não o natural e feito na
hora, mas sim o de caixinha. A novidade nesse dia ficou por conta da rapidez
com que engoliu tudo e se aprontou para sair.
Ao abrir a porta de casa, se deu conta do dia bonito que estava a sua
frente: com um céu azul praticamente sem nuvens e um lindo sol quente misturado
com uma brisa suave que acariciava seu rosto; uma manhã bem diferente daquela
do dia anterior, que fora um feriado chuvoso, inibindo a saída de casa. Alisson, mesmo assim, saíra a fim de aproveitar a folga. Pegou uma barca e foi até a ilha
de Paquetá. Ele desejava conhecer esse lugar turístico, cenário que ambientou o
romance A Moreninha do escritor
Manuel Antônio de Macedo; livro que lera no Colégio ainda no Ensino
Fundamental.
Extasiado pela beleza daquela manhã tão em contraste com o céu cinzento
do dia anterior, Alisson decidiu partir para o trabalho e tentar esquecer
aquelas confusões de dias e horários, ou então procurar entendê-las, ir atrás
de respostas.
Fechou a porta, abriu o portão de seu quintal que dá, ao seu carro, o
acesso à rua; entrou no veículo, tirou-o de sua garagem improvisada, pois
somente havia uma cobertura para o carro não ficar exposto ao sereno e ao sol. Saiu
do veículo para fechar o portão (de certa forma aquela rotina era confortável
mediante ao que estava vivendo, pois dava a ele sensações de normalidade),
entrou novamente nele e dirigiu-se para o emprego com uma velocidade fora do
normal para alguém sempre atento às regras do Trânsito. Queria respostas.
Pensava em chegar e constatar que tudo não passava de uma falsa impressão.
Durante a rápida viagem, seu pensamento voava junto com o carro. Alisson
queria chegar à Empresa, mas também encontrar possíveis explicações para o que
estava acontecendo com ele. Conjecturava que chegaria lá e não encontraria
Camily, pois estaria sumida e dada como morta. Também perguntaria sobre o dia,
mês e ano e chegaria a respostas precisas e esclarecedoras. E, assim, tudo
voltaria ao normal em sua cabeça.
Alisson começava a sentir em sua mente não apenas certo estranhamento com
tudo aquilo que estava acontecendo, mas também uma espécie de medo de estar
sendo refém de um tempo que não era o esperado, mas sim que passou, e,
portanto, que não devia estar acontecendo novamente. Alisson precisava retomar
os fatos em suas mãos, se sentir novamente o agente principal em sua história
de vida e não mero coadjuvante, sendo conduzido pelo inesperado ator principal
nesse enredo: o tempo. Seu desejo era o de buscar no seu local de trabalho, que
era o ícone mais representativo de sua rotina semanal, a normalidade dos fatos
e da sua vida.
Realmente, como ele esperava, não veria Camily na Empresa naquele dia,
mas quanto a ser dada como morta...
(Mudanças bruscas e inesperadas revelam que nada está sob controle. O indivíduo
muda constantemente assim como o mundo a sua volta não para de girar. Situações
inesperadas levam a desiquilíbrios interiores, que podem marcar para sempre a
vida da pessoa, levando-a a novas descobertas que tanto podem ser negativas
quanto podem ser altamente positivas. Uma coisa ou outra irá depender do contexto,
do tempo, das experiências adquiridas e das expectativas quanto ao que é novo).
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