Tem horas que é caco de vidro
Meses que é feito um grito
Tem horas que eu nem duvido
Tem dias que eu acredito.
(Paulo
Leminski)
9
Segunda-feira 8:30 da manhã. Alisson
dirigiu-se rumo à casa paroquial de Padre Abel. Nem parecia que tinha encerrado
um relacionamento amoroso de forma dolorosa na noite anterior. Estava confiante,
pois as respostas já começavam a chegar. Ele tinha certeza que Padre Abel
traria luz ao seu entendimento sobre o que estava acontecendo com ele.
Lembrou-se de ligar para a turma do
escritório de Markting. Falou com o pessoal e garantiu que à tarde estaria lá e
que eles “quebrassem” mais essa pra ele. Ouviu um chororô, mas disse que era
fundamental essa conversa. Depois ligou para Elizabeth e soube que o inspetor
Clayton havia acabado de ligar para ela, aproveitando o número do telefone da
Empresa que ele havia apanhado quando lá esteve fazendo os “interrogatórios”
sobre o sumiço de Camily. No telefonema, ele disse algo importante: estava
organizando naquela manhã uma invasão ao Morro do Carpão para tentar encontrar
o esconderijo em que Camily poderia estar. Ele afirmara que estava convencido
de que a moça ainda se encontrava viva lá no Morro, embora praticamente toda a
Delegacia em que trabalhava achava que era mais uma de suas suposições
estapafúrdias. Mas ele sabia que deveria agir logo, antes que fosse tarde demais.
Com muita lábia, conseguira convencer o delegado a fazer essa operação e ainda
conseguiu o apoio da Polícia Militar para a invasão. Na verdade, a Polícia já
estava planejando esse tipo de ação para inibir o tráfico na região e o agente
Clayton tirou proveito disto.
Alisson agradeceu a informação e
disse que estaria à tarde lá na Empresa e que, assim, eles poderiam acompanhar as
informações sobre a operação policial, juntos. Falou que estaria com o Padre
pela manhã e que solicitaria ao próprio que rezasse junto com ele por Camily.
Desligou.
O inspetor de polícia Clayton Gomes
era um pai exemplar e excelente marido. No trabalho, já era meio bola fora.
Quase sempre não resolvia os casos e acabava por complicar tudo com teorias mirabolantes
sobre o desfecho dos crimes. Além dessa trapalhada toda, ao ficar nervoso ou
ansioso, cuspia feito doido. Sua boca salivava com uma enorme abundância. Já
tinha ido a médicos de várias especialidades. Já havia procurado realizar todos
os exames imagináveis e nada de descobrir a real causa. Assim, o neurologista
atestou: sofre de cusparada obsessiva.
Não tem cura. Mas é possível controlar com ansiolíticos. Só que, ao ler na bula
do remédio Alprazolam 0,5mm, que o
mesmo traria um benefício: relaxar; e “trocentos” efeitos colaterais: de vômito
passando por diarreia até convulsão, seu Clayton não tomou nenhum comprimido.
Trocou o medicamento por Maracujina.
Teve uma vez que ele assumira um
caso de sequestro parecido com o da Camily. Só que o desfecho havia sido um
fiasco. Um garoto fora sequestrado na porta de casa enquanto brincava com os
coleguinhas. Ele morava numa boa casa no Grajaú. Era filho de uma microempresária
e de um advogado bastante respeitado. Tudo indicava que a principal suspeita do
crime era uma ex-empregada doméstica da família que havia jurado vingança ao
ser demitida por justa causa já que fora apanhada em flagrante pela patroa
roubando dois brincos de ouro da dona. Mas seu Clayton cismou que a sobrinha do
casal era a principal suspeita: uma garota de quinze anos que estava passando
férias na casa dos tios. Moral da história: a polícia demorou a agir,
confundindo-se com a suspeita errada e o menino foi morto pelos sequestradores.
O inspetor Clayton quando conseguiu prender a quadrilha e constatar que fora a
ex-empregada a mentora do crime, já era tarde. Ele até ficou depressivo por
cinco meses, tendo às vezes de ficar de licença médica tamanha era a “depre” em
que ele se encontrava.
Assim, a fama desse inspetor foi se
alastrando não apenas por sua Delegacia, mas também isso acabou vazando para
outras Delegacias. Quando já pensava em largar a carreira policial, sua esposa
e seus dois filhos o incentivaram dizendo que acreditavam nele e na sua
capacidade. Decidiu tentar de novo e, após dez casos praticamente perdidos,
finalmente seu Clayton esclareceu um crime: o roubo de uma lata de goiabada do
Armazém ou falando chique da Loja de Conveniência Pegue e Pague. Mesmo assim, o inspetor Clayton demorou uma semana
para desvendar o crime, enquanto que a gerente da Loja ou do Armazém, sei lá,
já sabia desde o primeiro dia do roubo quem havia cometido o delito: um
adolescente cheirador de cola que vivia pelas imediações da Loja manjando a
oportunidade. Porém, seu Clayton achou óbvia demais essa constatação até que
seis dias depois do ocorrido resolveu pressionar o rapaz que circulava de novo
por lá por certo esperando outra moleza para roubar. O garoto confessou após
quase meia hora de tortura psicológica sobre o que aconteceria com ele se fosse
para o juizado de menores.
Esta resolução “fantástica” do crime
da lata de goiabada ajudou a amenizar a má fama de Clayton. Agora tinha
novamente a sua grande oportunidade de subir no conceito de seus colegas de
trabalho, mas também no conceito de seus amigos e familiares. Era somente resolver
o “Caso Camily”. Ainda que com remotas chances de encontrá-la com vida, o mais
importante era dar um desfecho para o caso. Esse crime era visto por ele como
uma espécie de resgate, de redenção de seu nome e de seu prestígio como policial.
Uma nova chance para definitivamente começar sua carreira de sucesso profissional.
Clayton chamou todos os policiais e
agentes envolvidos na operação de invasão ao Morro do Carpão e fez uma
explanação de quarenta minutos sobre como seria a operação. No final da fala
dele, já tinha policial roncando sentado na cadeira. Outros fingiram que o ouviram,
mas não davam muita bola pra ele; certamente pela sua fama de trapalhão, o que
ganhava corpo com as paradas de cinco em cinco minutos para cuspir. Encerrou e
preparou os policiais para invadir.
O delegado dizia consigo mesmo:
“tomara que este paspalhão saiba o que está fazendo. Só deixei porque a Polícia
Militar ia lá mesmo e, além do mais, precisamos dar uma resposta mais efetiva a
esse crime senão daqui a pouco o caso vaza para a imprensa e estamos ferrados”.
O “delega” ficou tão preocupado com essa operação que passou a manhã toda com
diarreia, comendo torrada com suco de caju gelado para ver se refreava o negócio.
Que furada hein!?
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