A saudade é a nossa alma dizendo para onde
ela quer voltar.
(Rubem Alves)
Alisson entrou no carro extremamente
ansioso e partiu rumo ao seu inusitado, porém, esperadíssimo encontro. Ao longo
do caminho, procurou relembrar o último momento com sua mãe antes dela ter o
enfarte que acabou por vitimá-la. Por instantes, seu rosto entristeceu-se, pois
se lembrou de que sua última conversa com a mãe fora na verdade uma discussão
muito intensa sobre seu relacionamento com Alexia. Sua mãe era favorável ao
término da relação por achar que o filho não mais gostava da jovem e a estava
iludindo, porém Alisson dizia que ainda gostava de Alexia somente não tolerava
aquele ciúme doentio e a “marcação” cerrada que ela empregava no dia a dia na
“cola” dele. Ele desejava mais liberdade. A discussão não acabou bem com
Alisson gritando com sua mãe antes de sair da casa:
_Não vou desmanchar o namoro com
Alexia! Não estou enganando ninguém e, além do mais, quem manda na minha vida e
nos meus relacionamentos sou eu!
Certamente que nem seu pai e nem seu
irmão estavam em casa; pois, se estivessem, a muito que o teriam repreendido por
ter falado daquela forma agressiva e desrespeitosa com a mãe. O fato é que
agora Alisson estava a alguns minutos de encontrar-se novamente com ela. Isto o
perturbou. Lembrou que ficou aproximadamente uns dois meses se culpando pela
morte dela, ao que seu pai e seu irmão nunca aceitaram isso e até o consolaram
dizendo que ele não poderia adivinhar que ela estava com problemas cardíacos.
Na realidade, nem eles sabiam. Depois é que descobriram, pelos exames guardados
numa gaveta do quarto do casal, que ela estava com o “coração cansado”.
As paisagens passavam e a mente de
Alisson trabalhava intensamente: sem perder a atenção ao volante e ao mesmo
tempo refletindo sobre o que dizer à sua mãe e como aproveitar essa outra
chance para pedir perdão já que a discussão ainda não havia acontecido. Decidiu
que procederia normalmente e que aproveitaria cada momento com seus pais. Se
houvesse uma oportunidade, pediria perdão pelos erros cometidos e que em algum
momento porventura teriam magoado eles. Dessa forma, subjetiva, esperava tocar
sua mãe e conseguir o perdão dela.
O carro foi se aproximando da casa e
seu coração foi disparando. É como se, por alguns instantes, estivesse
desistindo de colocar em prática o plano traçado e, com total emoção, se
entregar ao momento de reencontro numa explosão de sentimentos contidos por
anos, não apenas os últimos dois anos e poucos meses de ausência de sua mãe,
mas também lembranças de um passado mais remoto e que agora estava mais vivo do
que nunca na alma de Alisson: desejos de afetos quando criança e adolescente, as
diversas vezes em que aborreceu feio sua mãe e a falta de tempo para estarem
juntos desde os tempos da Faculdade. É como se ele quisesse, naquela visita,
recuperar o tempo perdido.
Foi se aproximando do portão. Abriu
o trinco e isso funcionou como um dispositivo para aflorar essas lembranças e
Alisson se derramou em lágrimas, mas chorava de soluçar. Tentou recompor-se,
pois não queria deixar sua mãe preocupada ou emotiva demais, afinal, ele agora
sabia dos problemas cardíacos de sua mãezinha. Andou ansioso pelo pequeno quintal
e as lembranças de sua infância e adolescência vieram à tona novamente o
fazendo banhar o rosto. Procurou conter-se. Ele sabia que sua mãe não sabia de
nada, precisava disfarçar; e isto o deixou confuso, pois não desejava falsear
nada nesta nova oportunidade de falar com a sua mãe. Era o momento de falar a
verdade, de se expor, de aproveitar essa inusitada chance sendo sincero de
coração. Chegou à porta de entrada da casa; o caminho até que parecia uma
estrada longa e recheada de emoções. Lentamente levantou o braço direito e
apertou a campainha. Esperou. Parecia outra eternidade.
Sua mãe não veio atender. Quem veio
foi seu pai. Abriu a porta e o recebeu calorosamente com um abraço forte:
_Que bom filho! Eu e sua mãe estamos
muito contentes com essa visita inesperada! Vamos entre! Sua mãe está na
cozinha. Sente-se filho.
_É muito bom estar aqui, papai, o
senhor nem sabe o quanto! Posso ir lá ver mamãe?
_Pode... mas é que ela já está
vindo; ela ouviu a campainha. Você parece agitado, estranho, aconteceu alguma
coisa com você que nós não sabemos?
_Não pai. Só estou com muitas
saudades de vocês!
_Que coisa boa! Nós também sentimos
muito a sua ausência filho. Está ouvindo? Lá vem sua mãe. Conheço o arrastar de
chinelos de longe.
Alisson nem esperou ela se aproximar
de onde se encontrava. Quando ela ainda estava no corredor que leva da cozinha
para a sala, ele correu em sua direção e a abraçou muito forte; não dando nem
chances dela falar alguma coisa.
_Mamãe! Que saudades! Como é bom
poder abraçá-la novamente!
_Oi meu filho! Que bom ser abraçada
assim! Como você está? Está tudo bem? E a Alexia? Aconteceu alguma coisa?
_Não mãe! Está tudo bem, agora está
tudo bem.
_Sente-se! Vamos conversar! É apenas
saudades mesmo ou tem algo a mais?
_É saudade. Muita saudade a senhora
nem faz ideia...
Nisto, o pai sentindo que “sobraria”
na história, foi logo tirando o time de campo:
_Filho, fique à vontade com sua mãe
que eu vou à minha pequena oficina de bugigangas consertar algumas coisas. Sabe
como é que é: aposentado e velho tem que fazer algumas travessuras para se
sentir vivo de novo.
_Que isso, papai! Fique!
_Não, não. Já pressenti que hoje o
dia, ou melhor, a tarde é de sua mãe.
_Deixe seu pai. – a mãe falou – ele
estava doidinho mesmo para ir para lá. Então me diga filho: como você está?
_Eu estou muito bem, principalmente
agora revendo a senhora!
_Então como vai o trabalho? O namoro?
_Com
o trabalho está tudo bem, embora estejamos tristes e apreensivos com o desaparecimento
de uma colega lá da Empresa.
_Desaparecimento Alisson? Como
assim? Sumiu?
_É... uma jovem gerente de produção
que desapareceu a aproximadamente dois dias e meio, mamãe. A Polícia já está a
par da situação e começou a investigação para descobrir o que realmente
aconteceu.
_Que coisa horrível, meu filho! E
você a conhecia bem?
_Não, não muito bem. Éramos colegas
somente de trabalho, mas ao que me consta ela era uma excelente pessoa e uma
competente profissional.
_Deus ajude a achá-la! Vou rezar por
ela. Mas, e você e Alexia?
_Não estamos muito bem, como é de
praxe. Ela esteve lá em casa e se aborreceu; não entendeu que o sumiço da minha
colega de trabalho me chocou. Teve uma crise de ciúmes e foi embora. Não me
ligou mais.
_E será que ela não tem reais
motivos para ter ciúme desta jovem desaparecida? Qual é o nome dela, hein?
_O nome dela é Camily. Mas Alexia
não tem motivos reais para ter ciúmes. A senhora já a conhece e sabe que
qualquer coisa é motivo para nós brigarmos. Parece que ela acha que o combustível
do nosso relacionamento é a briga. Sem contar que ela fica querendo utilizar
seus conhecimentos da Faculdade de Psicologia no nosso relacionamento. Isto é
um saco! É porque Piaget disse isso..., Freud disse aquilo..., Lacan aquilo outro...!
Ah vai-te a ....
_Êpa! Calma aí! Isto ainda é uma casa cristã!
_Desculpe mamãe! É para a senhora ver como ela me irrita. Sumiu, me deu
um refresco. Daqui uma semana ela me retorna as ligações ou então aparece como
quem não quer nada. Já até sei.
_Bem filho, você sabe que eu já
algum tempo não aprovo o namoro de vocês; antes por pensar que só você não
gostava mais dela, porém nesses últimos dias tenho chegado à conclusão que
ambos não se gostam mais, apenas estão passando um tempo juntos; talvez vocês
somente tenham se acostumado um com o outro, o que é horrível para um casal que
ainda nem se casou.
_Acho que você tem razão, mamãe.
Essa frase deixou sua mãe surpresa,
pois esperava uma atitude mais enérgica por parte do filho, pelo menos era
assim que ele reagia quando ela tocava no assunto de desmancharem o
relacionamento. É lógico que Alisson sabia que deveria ir com cuidado ao
perceber que o assunto namoro havia começado. Não queria reeditar a discussão
feia que tiveram (parece estranho o verbo no passado já que a narrativa
encontra-se em dois mil e nove, mas era isto que se passava na mente de
Alisson) em dois mil e onze e que havia separado os dois até a morte de sua mãe
e que, além disso, o deixara por meses sentindo-se culpado pelo enfarte
fulminante que a mãe tivera. Agora dava razão a praticamente tudo que ela
falava, o que a deixava, até por vezes, constrangida ou boquiaberta.
_Estou surpresa, meu filho, com
nossa concordância em quase tudo que diz respeito ao seu namoro!
_ É mãe, a gente vai amadurecendo
não é mesmo? O tempo passa e faz com que a gente perceba determinadas coisas
que antes pareciam não aparecer. Vou procurar a Alexia para uma conversa
definitiva sobre nós, como está essa situação não pode continuar.
_Sabe filho, você falou sobre o
tempo e eu ouvi um sermão tão lindo domingo passado na missa. Falava sobre o
tempo. O padre Abel foi tão feliz no sermão!...
_É mesmo mãe? O que dizia? A senhora
se lembra?
_Claro! Ele usou o texto de
Eclesiastes capítulo 3 onde fala que “há tempo para tudo”. “Tempo de nascer e
tempo de morrer. De plantar e arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo
de curar. Tempo de derrubar e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de
rir (...) tempo de procurar e tempo de desistir...”
_Que lindo! Mãe.
Neste momento Alisson lembrou-se de
Camily. Sabia que não havia ainda chegado o tempo de desistir de procurá-la.
Então olhou o relógio e sentiu vontade de partir para continuar a busca, mas
logo pensou na importância daquele momento. Estava diante de sua mãe que havia
passado pelo “tempo de morrer” e agora estava, junto com ele, vivendo o “tempo
de viver”. Sim, ela havia “nascido novamente” na vida de Alisson. Era “tempo de
curar” as feridas da alma provocadas pela discussão que tiveram em dois mil e
onze; e o mais interessante: curando as feridas de dois mil e onze em dois mil
e nove. Algo fascinante e impensável para muitos, mas não para Alisson.
Então, neste período da conversa,
eles começaram a relembrar os bons momentos que já tinham passado juntos, desde
a infância de Alisson até aquele presente instante. Ela falou das travessuras
dele quando pequenino e da dificuldade que era deixá-lo na escola já que fazia
um escândalo tremendo cada vez que tinha de se despedir dela. Disse ainda sobre
o período difícil de enfermidade que ele atravessara quando completara doze
anos; fruto de uma infecção de garganta grave.
Eles lembraram como eram divertidos os finais de semana na casa da tia
Nena, lá em Saquarema. Alisson lembrou-se da música que havia cantado para
homenageá-la na comemoração do dia das mães, na escola: “Carinhoso”. Sua mãe,
por sua vez, trouxe à memória de ambos o quanto o tio Zeca, irmão mais velho do
pai de Alisson, gostava de cantar pelas manhãs, quando ia passar alguns dias
ali naquela casa. Recordaram que ele pegava seu violão velho, de tampo amarelo
e bem envernizado nos lados, braço e atrás, e cantava a sua música preferida:
“Corra e olha o Céu”, de Cartola. Ambos, em sua memória, já que fazia uns dez
anos de sua morte, cantaram, juntos, a canção três vezes:
Linda!
Te sinto mais bela
E fico na espera
Me sinto tão só
Mas!
O tempo que passa
Em dor maior
Bem maior...
Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olha o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
Aaai!
Corra e olha o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
Ainda cantando, sua mãe levantou-se
e foi até a cozinha buscar uns bolinhos de chuva com refrigerante, lanche
preferido de Alisson quando criança. Tudo parecia perfeito nesse reencontro.
Ela voltou com a comida e Alisson se deliciou. Sua mãe ainda disse:
_Ah, Antes de ir, pois eu sei que
como das outras vezes o lanche é a deixa para partir, o Padre Abel também falou
no seu sermão de um tal de Agostinho, Santo agostinho, que foi um bispo
importante na História da Igreja, que também era filósofo e escreveu muitas
coisas bonitas sobre o tempo. O padre disse que essas coisas estão no livro Confissões. Nossa! Quando o Padre citou
esse Agostinho no sermão, o vigário “viajou na filosofia, filho”. Falou coisas
que eu nunca tinha parado para pensar sobre o tempo, deve ser coisa de filósofo
mesmo, né?
_Com certeza, mãe. Mas como eu estou
me interessando mais sobre o tempo, vou procurar ler o que esse filósofo falou,
de repente ele me ajuda a entender determinadas coisas que estão acontecendo.
_Que coisas?
_Deixa pra lá, mãe. Vem cá para eu
abraçá-la e beijá-la como nunca!
Assim, ambos se abraçaram e se
beijaram muito. Alisson despediu-se de seu pai lá na oficina e novamente
despediu-se de sua mãe, era como se não quisesse ir embora, porém tinha que ir.
Precisava saber sobre Camily. Passou pelo pequeno jardim e se emocionou de
novo. Entrou no carro e acenou com um adeus para sua mãe, que da janela,
respondeu com outro aceno e com as palavras que não se ouviam o som por causa
da distância, mas eram perfeitamente entendidas pela leitura labial: “Eu amo
você, filho”. Alisson acelerou e se foi.
Na viagem de volta para casa, só pensava nos
momentos incríveis vividos ali. Lamentou não rever o irmão mais novo que ainda
não havia chegado do trabalho. Também achou que poderia ter conversado um pouco
mais com seu pai. Entretanto, reconheceu que realmente a tarde era de sua mãe.
Refletiu sobre a passagem bíblica citada por sua mãe: Eclesiastes 3. E logo
lembrou que mais uma vez o texto sagrado aparecia como uma possível alternativa
de respostas para o que estava acontecendo com ele. Então, recordou que tinha
recolhido uma referência bíblica na casa de Camily. Perturbou-se com a
possibilidade de ter perdido o papel. Talvez estivesse ainda no bolso da camisa
que usara naquela ocasião. Se fosse assim, reencontraria o papel no cesto de
roupas sujas. Ansiou mais ainda por chegar à sua casa. Desejava encontrar o papel
e ainda ligar para Elizabeth para saber notícias de como andavam os rumos da
investigação sobre o desaparecimento de Camily.
(O pedido de perdão é um ato de extrema humildade, além de revelar um
caráter nobre e uma postura sensível. Todavia, não é uma atitude fácil. Requer
coragem e estar pronto para correr o risco de receber em troca de seu ato não a
aceitação do pedido de perdão, mas sim um discurso agressivo e soberbo; já que
o ato de humilhação é sempre visto como confissão de culpa pela pessoa
insensível e que não tem um coração disposto a esquecer e perdoar.
No entanto, os benefícios de pedir perdão e de perdoar são tão grandes e
fazem tão bem à alma humana, que vale a pena correr o risco e ir em frente. A
sensação de alívio e de que se fez a coisa certa é incrível quando se pede perdão.
Por mais que seja difícil, a pessoa que exerce a prática do perdão, com
certeza, não se arrepende de ter feito a escolha correta.)
(Gilmar Cabral)
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